Zelda para artistas
Quem já criou algo na vida sabe da dificuldade que esse processo envolve. É frustrante, é desgastante e toda obra que saí é um pequeno milagre. E no exercício subsequente, sabemos que é difícil superar o que veio antes, que recebeu elogios e colocou olhos em você. Como superar?
A resposta de muitos artistas é a mudança de foco. Esqueça o mar que você se matou fazendo, seu momento agora é a terra, a grama, a lama. Sua peça não precisa ter nada a ver com a anterior, e é melhor assim.
Mas e quem ousa expandir o mar? Certamente o mar #2 será muito comparado com o mar primogênito. E se as cores não remeterem ao original? E se a técnica for um pouco pior? E se, deus me livre, ele seja derivativo e quase uma cópia completa do original? Porque você vai propositalmente se arriscar a fazer algo objetivamente inferior?
No mundo utilitarista da indústria dos videogames, nós sabemos o porque. Marcas e jogos tem peso e andar nas costas dos mesmos, nem que seja por 70% do dinheiro e apreço, ainda é mais seguro e benéfico que apostar em algo novo e perder tudo. Mas isso é papo de quem tem dinheiro pra ter charuto na boca. Para quem se contenta com o cigarrinho que puder comprar, criar uma continuação envolve uma série de questões e medos, muitos dos quais devem ser ignorados até o fim do projeto.
É um pouco bobo falar de Tears of the Kingdom como se ele fosse o segundo jogo da série Zelda. Zelda sempre competiu consigo mesmo, sempre mudando, inovando, fazendo questão que as pessoas lembrassem daquele Zelda especifico como seu marco no tempo. O que acontece, é que TotK (para os íntimos) é o único que tem o privilegio de competir intimamente com seu antecessor. TotK, como esperado de todo Zelda, nos trás novos puzzles, novas mecânicas, novas formas de se brincar. Mas ele é único em ser o primeiro Zelda a compartilhar o mesmo mapa e o mesmo mundo com seu antecessor (Link Between Worlds saiu com uma diferença muito grande de tempo para ser a mesma coisa). Diferente de Termina ou das sucessões de acontecimentos da trilogia Wind Waker, TotK produz basicamente o exato mesmo local de seu antecessor. Tudo está em seu devido lugar e se você se aventurou 6 anos atrás por essas terras, vai saber exatamente onde encontrar o que quiser.
O milagre de TotK se resume a alterações substanciais, mas nem tanto, desse mapa e como você interage com ele. As habilidades novas de Link já são o suficiente pra que esse mundo abra de forma inédita, e a Ultrahand, sua habilidade de juntar objetos e brincar de Lego, é a maior culpada nisso.
Quem jogou BotW sabe como seus cavalos eram importantes, basicamente sua vida, e necessários para atravessar Hyrule. Ter que ir pra algum canto onde eles não conseguiam se locomover muito bem era uma dor única. Em TotK você mal os vê. É muito querido poder trazer todos os seus cavalos do BotW para o jogo, mas também parece, de forma quase condescendente, um bônus fofo que não importa muito visto que eles ficarão no estábulo pela maior parte do tempo. Acontece que em TotK você pode construir ferramentas para interagir melhor com o mundo e isso muda tudo. Montanhas que antes necessitavam de paciência para serem escaladas agora viram triviais quando se usa um foguete. Rios com correntes fortes podem ser desafiados com seu barquinho movido a 3 ventiladores. Tá afim só de dar um rolê e catar tudo? Crie uma motinho voadora e saia explorando os arredores de Hyrule até sua bateria acabar (ou você repor ela).
As tecnologias Zonai são a verdadeira diferença de TotK para o BotW. Sim, chegarei no ponto de falar das duas áreas novas que são basicamente dois mapas novos inteiros, mas fundamentalmente o que muda os jogos é a liberdade criativa do jogador, a qual BotW já esbanjava muito e TotK elevou para níveis infinitos. Game Designers entendem que a interação do jogador com o jogo cria uma experiência fundamental no seu apreço. Mas há uma sensibilidade extra quando você percebe que aquilo que você criou antes é reutilizável, que a mera diferença de chegar em Kakariko Village a pé em BotW e voando no TotK pela nave que o jogador mesmo construiu já mudou exponencialmente a experiência dele. É o mesmo mapa, é o mesmo lugar, mas interação é tudo, o jogador agora resolveu o problema da forma que teve vontade.
Há uma mudança tonal em Hyrule para comportar essa nova era de criatividade. Acabando a calamidade e o perigo de BotW, as pessoas agora puderam focar em reconstruir seu mundo e reencontrar as felicidades da vida. Moda começa a tomar vida em Hyrule, cidades começam a abrir suas portas para virarem pontos turísticos, entretenimento vira uma grande empreitada do povo. Apesar de você escutar que há vários problemas e perigos a serem resolvidos em várias regiões, os problemas num geral são menos catastróficos e mais pontuais, são fenômenos de clima, limpeza, interpessoais e sobrenaturais que necessitam da sua ajuda, mas não engolem o espirito geral. Muito pelo contrário, uma constante é encontrar que esse povo estava na melhor porém não conseguem mais focar nas suas felicidades pelo inconveniente. Não há mais o fim do mundo, agora é a era das artes e do melhoramento. Pode parecer uma mensagem perigosamente capitalista, e em certo nível não deixa de ser, mas há um foco na felicidade geral que não pode ser ignorado. Hyrule é um mundo vivo, alegre e seu povo agora aventureiro e não dependente do sacrifício da Zelda ou dá chamada heroica de Link. Eles querem conseguir ficarem de pé por conta própria e é isso que eles fazem.
Ao que remete o céu e o inferno, são o diferencial do TotK no quesito de localidade. Apesar de serem áreas completamente novas, a verdade é que os 3 planos que você pode explorar são intrinsicamente conectados. As ilhas no céu são visíveis da superfície, e muitas ficam diretamente acima de pontos importantes no mapa. Já o inferno é uma copia invertida do que se vê acima dele: rios se tornam montanhas impenetráveis, cidades viram locais de refinamento e a geografia geral é invertida. E para completar, há uma conexão entre o céu e o inferno na medida que o subsolo te permite aumentar o limite de sua bateria, o qual geralmente se traduz em mais tempo de voo pelo céu, chegando com mais facilidade em todas as suas localidades. E vice-versa, o céu te agracia com mapas que ditam exatamente onde encontrar tesouros no inferno. Essa conexão tripla é a forma do jogo dizer pra você não se focar mais um no que outro. O céu, a terra e o inferno são todos necessários.
É evidente, porém, que muito além das necessidades estéticas do jogo, esses locais são outros facilitadores de criatividade. Voar pelo céu e atravessar o inferno requerem dois tipos de sensibilidades diferentes, que também não são as mesmas de se atravessar a superfície. A ideia é ter criatividade ilimitada, mas também guias e limitações para você, propostas diferentes para você pintar o mesmo canvas. Continuo cada vez mais firme de que esse jogo possui a sensibilidade artística e criativa de poucos outros.
Levando tudo isso em conta, também fica claro que a necessidade e sensibilidade artística e criativa não faz parte da vida de todo mundo, até de quem joga videogame com frequência. Nem todo mundo gosta de ter um canvas em branco com criatividade ilimitada. Claro, isso é resolvido pela internet e você ir lá digitar “Veiculo mais roubado de Tears of the Kingdom”, mas até pra quem não quer fazer isso o jogo sempre faz questão de te dar uma ajuda, seja com esquemáticas de veículos ou apetrechos prontos, ou até mesmo deixando objetos posicionados de forma suspeita pelo mapa para ver se você vai usar eles de forma benéfica a sua situação. É a criatividade transformada em puzzle, o que é muito presente nos shrines do jogo, e é claramente o tipo de jogo feito pra você se sentir esperto depois de resolver um deles. Apesar dessa parte ser mais análoga a um teste de lógica que criativo, a escolha de como utilizar cada peça ainda é sua, não há um diagrama certinho do que você tem que fazer. A arte é para todos.
Eu não me dou bem com texto grande então obviamente ficou todo desconexo e eu perdi o fio da meada la pela parte que comecei a falar dos três mapas. Azar, esse é o poder que Atena me deu. E vou usar essa poder pra terminar o texto como bem entendo. Joguem Tears of the Kingdom é um jogo lindo e maravilhoso. A extensão do mar pode ser derivativa mas as vezes ela te permite conhecer Leviatã, que não se encontrava lá antes, e descobrir que ele é um bom anfitrião.