ZeroRanger — Não é assim que come laranja, não
ZeroRanger vai fazer você se sentir exatamente assim:
E vai ser a melhor coisa que vai te acontecer nele.
Quando os últimos pontos de vida do seu personagem mais forte chegam em zero, você já sabia o que ia acontecer. A morte era inevitável àquela altura e, em geral, você sabe o risco calculado que você tomou e deu errado. Mesmo que tenha perseverado, desperdiçado vários itens de cura e ressurreição, morrer tem um gosto de apagar das luzes.
Por isso mesmo, é uma situação você pode diagnosticar antes que aconteça. Carregar de um ponto anterior do jogo é um gesto de resignação não só frente ao momento em que você perdeu, mas a tudo que levou até ali. A morte é o fruto de uma árvore de decisões erradas, de modo que salvar e carregar se tornam uma meta-habilidade dentro de muitos jogos: você precisa aprender a salvar nas horas certas e, principalmente, no lugar certo, antes que seja tarde demais. Você com certeza já passou por isso — a pior morte possível dentro de um jogo é salvar no ponto sem retorno, em vez de carregar. Ficar preso em uma situação irreversível é a única morte real dentro de um jogo, porque é aí que você realmente precisa começar tudo de novo.¹
Vidas, olhando assim, são um acordo no qual você não pode decidir livremente de onde você vai voltar, mas, em troca, saberá que não existem situações irreversíveis. A partir daquele ponto, o jogo te garante que você pode só seguir que, com certeza, existe um jeito de transpor o obstáculo em que você parou da última vez. Seu progresso até ali garante isso.
Em jogos de navinha, a morte é levada mais na esportiva. Tomou tiro? Sua navinha explode, faz um estardalhaço, você toma alguma punição (tipo perder poder e sua sequência de pontuação) e vida que segue. Isto é — enquanto você tiver vidas. Se todas as suas vidas acabarem, a colher de chá acaba e o jogo pergunta se você quer continuar. Muito como salvar é uma meta-habilidade, continues são uma meta-vida. Você pode seguir jogando a partir daquele mesmo ponto, mas perde toda sua pontuação e tudo que marcou seu progresso até ali.
O jogo finge que te engana, porque recomeça de onde você parou e te permite que você chegue até o final; e você, versão zumbificada de si mesmo, finge que acredita. Se você terminar o jogo usando continues, os dois sabem que existe mais coisa que você poderia ter feito. Sua pontuação deixa claro que seu progresso é falso, uma concessão, e quando sua pontuação de fim de jogo é menor que a vez em que você só chegou na terceira fase, surge um sussurro que diz “melhor você tentar de novo”.
Isso faz com que jogos tenham um jeito de marcar sua história nele. Pontuações, troféus, o nível dos seus personagens, quantidade de dinheiro: sempre existe algo que identifica seu caminho.
ZeroRanger pede que você lute contra esse apego.
As meta-vidas são, em ZeroRanger, parte da história e são, em certa medida, a mecânica principal. Sua pontuação gera mais continues, dos quais você absolutamente vai precisar para terminar o jogo pela primeira vez. A falha é imprescindível porque é através dela que você obtém mais chances, para não falhar de novo. Dos seus escombros, surge um novo lutador, capaz de ir mais fases adiante com o mesmo número de continues e, por isso mesmo, pode ganhar mais pontuação em uma jogada. Com mais pontuação, você consegue mais continues. E acredite quando eu digo que, em vez de renegá-los em favor de um jogo “limpo”, você vai precisar deles se quiser terminar o jogo.
Nesse mecanismo, existem duas histórias: a da insistência e a da abnegação. A da insistência, porque tentar de novo é parte integral de vencer, mais do que vencer sem falhar nenhuma vez. A da abnegação, porque desistir também é parte de vencer — de maneiras muito sutis. Por exemplo: aceitar sua maior pontuação, mesmo que com um progresso mais fraco, pode ser mais importante do que usar um continue só para conseguir terminar a fase. Afinal, sua pontuação te dará mais meta-vidas.
Seu melhor esforço tem valor por si só e não pode ser comparado com qualquer outra iniciativa em que você ou outra pessoa “jogar melhor”. Rankings perdem sentido; a competição perde sentido; a facilidade ou dificuldade absoluta do jogo não são importantes. Só importa o modo como você está navegando pela história, pelos padrões de tiros dos inimigos² e o sentimento que te carrega até o próximo nível.
Eu digo sentimento porque existem narrativas emocionais muito palpáveis em ZeroRanger. São códigos construídos ao longo dos anos por jogos de navinha: quando um inimigo está desesperado, seus padrões se tornam caóticos e seus movimentos, mais erráticos. A inversão de padrões calculados (momentos nos quais o jogador tem que olhar mais de fora), para a ausência de padrões, (momentos em que o jogador tem que focar a atenção na área mais perto de si) geram um choque: mesmo que seja até mais fácil, o que está mais à frente desperta uma tensão muito maior.
Mas, em jogos normais, você precisa sobrescrever sua história com uma história melhor. Você precisa, então, se manter mais calmo em situações assim. Com isso, você não vai sucumbir ao desespero do inimigo — afinal, você já conhece a história, e só é novo o que você ainda não viu. ZeroRanger não é um jogo normal: você não precisa sobrescrever nada, só adicionar ao fracasso que você já teve antes. Tudo que você fizer é novo, mesmo que seja uma repetição. Não tem problema abraçar o caos da fase ou do chefão toda vez em que você voltar.
Laranjas são muito importantes para ZeroRanger. Toda vez que você toma um game over, você é recebido por uma telinha com uma frase sobre laranjas antes de o jogo recomeçar. As mensagens são para você, jogador, e são um jeito muito delicado de reconhecer sua existência. O jogo normalmente não se esforça para te chamar para dentro, te colocar como parte dele através de recursos como “quebrar a quarta parede” ou coisas que tais. Essas pequenas frases são recados de um jogo que sabe que você está ali, mas também que não precisa te lembrar disso. É para te abrir um sorriso, mesmo. É o recurso mais simples do mundo, mas, no contexto, tem muita beleza porque tem muitos sorrisos a serem abertos — não como consolo por perder, mas te congratulando por fazer parte desse ciclo de vida e morte.
Tomar riscos e se tornar um jogador melhor, em ZeroRanger, não são uma aposta dobrada, em que você coloca seu progresso à mercê da sua habilidade atual. São passos para entender, finalmente, o valor da perda por si só — e se colocar em direção à abnegação. Em qualquer um dos muitos jogos de navinha a que ZeroRanger faz referência,³ aquele que conseguir zerar de uma vez só, sem perder vidas ou usar continues, terá sido o melhor jogador. Em ZeroRanger, no entanto, terá sido alguém que não jogou nada.
¹ Em Corpse Party, do qual a gente falou esses tempos atrás, existe um momento em que não lembro o que é que acontece, mas o jogo avisa que se você fizer determinada coisa, você vai morrer. Aí você vai lá e o quê? Faz essa coisa. No que você faz, a porta da sala em que você está se fecha, e nada mais parece acontecer. Você está simplesmente preso, para sempre. Eu acho essa a forma mais sofisticada possível de game over, porque você pode continuar ali o quanto você quiser — mas o jogo acabou. Na verdade verdadeira, a porta não fica fechada para sempre. Mas eu queria que ficasse.
² Sabe que, em jogos de navinha, sua nave está atirando o tempo todo, mas os inimigos (mesmo que sejam naves parecidas) têm padrões de ataque. Será que o seu tiro é uma abstração e, da perspectiva do inimigo, você também tem um padrão de ataque? Touhou sugere que sim, porque existem jogos em que você luta exatamente contra as spellcards que você usava em jogos anteriores. Mas, como a ação principal em Touhou é dançar no padrão dos outros, o padrão que você está materializando não é tão importante. Outros jogos talvez não tomem seus tiros, e tudo que você está fazendo, como abstração. Mas aí, são outra história.
³ Uma parcela dos jogos feitos se dedica a conferir consciência para o fenômeno videogames de modo geral. Não consciência no sentido político, embora também possa ser o caso. Falo de uma coisa mais básica, mesmo: de saber se ver no espelho, se entender no mundo como imagem, manipulável e manipulada pelas lentes que se usa. É uma tarefa difícil: o jogo não está só se reconhecendo, mas também se reconstruindo.
É quase um gênero em si, o das “cartas de amor”, e que ganhou muitos exemplares de uns dez anos pra cá: jogos que reconhecem abertamente suas referências e procuram homenagear um gênero, uma época ou um estilo. Eu não gosto desse termo, “carta de amor”, por um motivo muito simples: cartas de amor têm endereço. Podem ser bem escritas e bonitas, mas se prestam a exaltar o valor em outra coisa. Jogos como ZeroRanger reverenciam os que vieram antes dele, mas o que torna os destinatários dignos daquele amor em especial é a própria “carta de amor”, pesando os valores, a gramática e o modo de jogar que sustentava nesses clássicos contra a materialidade e a sintaxe dos videogames hoje.
Fazer esses jogos é uma atividade crítica tanto quanto é artística ou passional. Você está selecionando jogos e convenções para algo novo e, com isso, fazendo concessões que também dizem respeito às convenções de outros jogos. Então você não está simplesmente prestando homenagem a um gênero — você está criando ele, frente a outro contexto.