Aprenda a ter medo na escola
ATENÇÃO: este texto possui spoilers de Detention, Corpse Party, Doki Doki Literature Club e Doki Doki Literature Club Plus
Quando a gente é criança, às vezes não vê muito a escola em toda sua dimensão. É como se ela desaparecesse completamente — não só quando vamos embora, mas também quando pensamos nela em qualquer outro tempo.
Os espaços liminares que assombram a escola não são só a imagem dela vazia de noite, mas também a reunião de pais e mestres (quando a escola só tem adultos e só algumas salas estão abertas), o recreio sem a turma que foi a uma excursão naquele dia ou até o dia em que faltamos e temos que imaginar nossa própria ausência. Nossa própria carteira vazia enquanto o resto do mundo corre na normalidade talvez seja a coisa mais estranha que dá para imaginar.
O absoluto inverso, então, é completamente impensável. Ficar na escola para sempre é um contrassenso porque, mesmo pititicos, a gente sabe lá dentro da gente que aquilo é transitório. Professores são substituídos, esperam que passemos de ano, o colega — ou mesmo a gente — muda de escola. Ficar preso no transitório é um pesadelo que nem passa pela cabeça. É o horror.
Minha parte favorita de Detention é um momento muito pequenininho, logo no começo, que diz tudo. Nos primeiros quinze minutos, mais ou menos, você joga com um moleque, que encontra uma menina desacordada no pátio do colégio em um dia de tempestade. Você acorda ela e, juntos, vocês tentam sair da escola. Não dá pra sair, então vocês voltam. Aí depois você joga com a garota, que não tem ideia do que tá fazendo ali, e quando volta pro pátio do colégio, o cidadão com quem você estava é quem está desacordado. Ele está pendurado de cabeça para baixo sobre o palco, rodeado de velas vermelhas.
Bom.
Aí você vai, colhe várias informações para um ritual necessário para prosseguir, e descobre que precisa de sangue. O único jeito de conseguir sangue é cortando o pescoço do menino pendurado e cabe a você colher esse sangue.
Bem.
Tem um momento de susto logo que você faz isso — o menino abre os olhos por uma fração de segundo. Mas ele absolutamente não é importante, ainda que confirme o que você já sabia: tem alguma coisa errada. O horror não está no susto, mas sim em sentir, ver e saber que você está cortando a garganta de alguém para colher seu sangue. Existe nisso um símbolo, cujo significado você descobre mais para frente.
Na verdade, a história é toda feita de metáforas, não para você, mas para a protagonista. Você também é a coragem dela, porque ela precisa descobrir uma verdade muito pior do que os monstros que a assombram. E, junto dela, você também precisa descobrir por que ela está presa na escola para sempre.
O Fellipe já falou antes aqui mesmo sobre a via de mão dupla entre pesadelo e memória em Detention, e a construção de significado acontece como um joguinho de Jenga, em que você retira algo que estava ali dando sustentação para colocar no topo, tentando evitar que tudo desmorone na sua frente.
Esse jogo de refazer uma torre de pecinhas é feito de momentos como esse, do começo. Você precisa se tornar uma pessoa um pouquinho menos pura, admitir para si mesmo que sabe mais do que diz que sabe e enfrentar as consequências disso. O susto não é o que te torna mais resiliente: é praticamente uma recompensa por já ser mais corajoso em primeiro lugar. É a confirmação do seu medo, mas também sua escolha de enfrentá-lo.
Essa é exatamente a razão pela qual Corpse Party equivale a mais ou menos quinze anos de serviço militar em Esparta. Isto é, se esses quinze anos envolvessem ficar preso na escola.
Mas espera. Para falar de Corpse Party, eu vou precisar te dar um histórico dos lançamentos dele, porque se não nada vai fazer sentido quando você procurar sobre ele na internet.
Vamos fazer uma brincadeira: só uma das informações a seguir é falsa. Esse discernimento vai ser 100% sua responsabilidade:
- Corpse Party foi feito no RPG Maker e originalmente lançado para PC-98, em 1996.
- Aí fizeram um remake para o Windows dez anos depois, em 2006, com um subtítulo:
- E é essa a versão com a história mais conhecida por todos. O original nem dá nome para a menina de vestido vermelho que é marca registrada da série;
- Aí pegaram esse remake e fizeram outro remake. Esse remake eles lançaram para PSP e iOS, com um subtítulo embaixo do subtítulo do remake anterior;
- Daí esse remake de PSP chamaram só de Corpse Party para lançar no Ocidente;
- Esse remake chamado Corpse Party, mas que na verdade é um remake do remake, tem uma sequência, chamada Corpse Party: Book of Shadows, também para PSP;
- Essa sequência tem dois spin-offs:
- Corpse Party: Sweet Sachiko’s Hysteric Birthday Bash, em que Sachiko prepara um bolo de aniversário para comer com todas as pessoas que ela matou nos jogos anteriores;
- Corpse Party: La Santa Sangre Festival, em que Sachiko ganha uma viagem com acompanhante para o México e tem que escolher uma de suas vítimas para ir com ela;
- E então lançaram uma sequência para Corpse Party: Book of Shadows, chamada Corpse Party: Blood Drive;
- Corpse Party: Blood Drive é em 3D e não faz sentido se você não jogar Corpse Party: Sweet Sachiko’s Hysteric Birthday Bash antes;
- Então, eles lançaram uma sequência para Corpse Party: Blood Drive intitulada simplesmente Corpse Party 2;
- Em algum momento de 2020 anunciaram o fim da série com o título Corpse Party: Darkness Distortion, que ainda não tem data definida para ser lançado.
Espero que tenha ficado claro.
Aqui nós vamos falar só de Corpse Party: Blood Covered, que foi lançada na Steam sob o nome Corpse Party. A história é a seguinte: um grupo de amigos de escola, mais uma professora, está no colégio fazendo um ritual chamado Sachiko Ever After (幸せのサチコさん, Shiawase no Sachiko, no original em japonês). Esse ritual garante que quem o faça permaneça unido para sempre, se feito certo. Se feito errado, quem o faz é transportado para a Heavenly Host Elementary School, um nexo multidimensional que recria o ambiente de uma escola em que um sem-número de crimes foi cometido, incluindo o assassinato de Sachiko. Desde que foi morta, ela prende estudantes em seu domínio para matá-los (para quê?).
A parte de ser um nexo multidimensional é muito importante porque o grupo de Corpse Party é dividido em quatro no começo do jogo. Com o primeiro grupo, você descobre o funcionamento geral do inferno em que todo mundo se meteu e vê coisas muito estranhas por aí: uma pilha de restos que não dá para identificar, vestígios de assassinatos brutais, espíritos vingativos.
Até aí, tudo bem. Existe, em Corpse Party, um terror construído em camadas — muito delicado, mas explosivo: conforme você vê o que acontece com os personagens, você entende por que cada um dos vestígios está ali. E você precisa passar por eles de novo, mas com a consciência do que tudo significa. Ou, quando não, a apreensão toma conta. Afinal, o inevitável também é imprevisível: qual dos personagens que você está controlando é aquela massa indistinguível de carne e ossos, e como ele vai morrer?
Você já se importa com eles. Eles parecem ter problemas singelos, de quem não pensa muito no que acontece com a escola depois que vai para casa. Mas, naquela situação, eles se revelam, se escondem por trás das revelações que pensamos serem as últimas, e se desesperam porque só querem sobreviver. E então, quando existe para alguns deles a chance de escapar e deixar os amigos para trás, o que eles deixam mesmo para trás — e nós também — é o medo. Porque queremos salvar os amigos, escapar de verdade da escola, torná-la transitória de novo.
Doki Doki Literature Club Plus é outro jogo em relação a Doki Doki Literature Club. Em tese, é tudo a mesma coisa. Você é um garoto que entra no clube de literatura da escola, faz poemas para agradar às meninas do clube. Mas enquanto Sayori, Natuski e Yuri permanecem iguais, Monika fica… diferente. O jogo-base não muda substancialmente, na verdade. Seu entorno, no entanto, é totalmente diferente.
Se você quer saber mais sobre como Monika é um apanhado de números que não se disfarça de gente, a gente já falou sobre isso aqui antes. Acontece que a fagulha de vida na Monika está no fato de que ela se assume como um arquivo no seu computador e, com isso, deletá-la para que o jogo acabe é um ato sem remissão: mesmo que você desinstale o jogo e o instale de volta, ela conseguiu incutir em você a sensação de que ela é tão de verdadinha quando um ser de mentirinha pode ser. Jogar de novo, pelo motivo que for, passa a ser um processo totalmente artificial e mecânico.
Existe, nesse truque, uma base importante: ela é um arquivo no seu computador. Doki Doki Literature Club Plus é um jogo pensado para rodar no Switch e no PlayStation. Portanto, precisou simular o Windows por meio de uma “máquina virtual”, que é o verdadeiro jogo. Todas as presepadas do Doki Doki Literature Club são absorvidas para dentro do novo limite do jogo e, com isso, são incapazes de produzir o mesmo efeito. É como se Monika estivesse presa dentro de outra armadilha existencial, um loop que a máquina virtual te obriga a refazer várias vezes para alcançar todos os passos que revelam a história de como o jogo original é, como um todo, uma simulação feita com propósitos escusos.
Nesse novo truque, Dan Salvato conseguiu transformar o lançamento do jogo em algo muito maior do que o original — e um preparo para algo que está por vir desde sempre, seja lá o que for. O trabalho de detetive, mecânico, de escutar pelo menos quinze dos monólogos da Monika, desumaniza novamente o que nós tornamos humanos por nosso próprio esforço da primeira vez. É um sacrifício que arrefece todo o horror que sentimos quando vimos Monika quebrar o primeiro jogo, nos dessensibiliza a cada vez que precisamos passar o (segundo) fim de semana com a Yuri.
Mas nisso reside um horror maior. Um desespero que não existia em Doki Doki Literature Club. Monika irrompia sobre a escola, e quem quer que tenha feito um backup do seu arquivo de personagem em um pen drive fabricou a fantasia de que estava, se não libertando, pelo menos carregando-a consigo. Mas, em Doki Doki Literature Club Plus, ela está presa de novo. E não tem absolutamente nada que você possa fazer por nenhuma delas, a não ser recomeçar o jogo e descobrir tudo que tem para descobrir. Por mais que assuste.
Não lembro mais onde eu vi. Acho que foi numa análise curtinha de algum jogo na Steam, esses dias. Mas a frase “jogos de terror não têm que te assustar — eles têm que te tornar mais corajoso” foi dessas que imediatamente ressoam em você e sintetizam várias coisas que estavam já aí dentro fazia muito, só desconexas e adormecidas. A última que tinha tido esse efeito era “tragédia é quando todo mundo tá certo”, e até hoje ela me faz fechar os olhos e balançar a cabeça, ruminando. Então, espero que te sejam úteis também, de alguma forma.
Em primeiro lugar, o pensamento encapsula muito bem o quanto o que acontece no segundo logo antes de você apertar o botão é muito mais importante do que apertar o botão. Se cada botão que você apertar não te fizer uma pessoa pior, poderia um robô estar jogando no seu lugar e não ia fazer diferença. Todas as escolhas em um jogo, todo jeito de revirar o sistema, um algoritmo pode fazer. Na verdade, um algoritmo faz isso mesmo, pra ver se não tem nenhum problema no jogo. Agora, transformar seu sentimento — isso, só você pode fazer. Então tudo bem, o susto pode ser importante. Mas o que eles fazem com você, de verdade? Essa é a resposta: no pior terror, eles nos deixam com medo e nos abandonam; no melhor, eles nos deixam mais corajosos.
Vai ver é por isso que jogamos, no fim das contas. Ninguém quer ser a pessoa que só foi pro céu porque o diabo achou que não ia ter graça fazer cair em tentação.
P.S.: Esse texto nem seria possível se a Barbara não tivesse jogado todos esses jogos comigo e pensado sobre tudo isso também — na verdade, eu mais assisti que joguei, mesmo. Obrigado ♥