Fascista é o tempo
A vilã de Final Fantasy VIII quer destruir o tempo porque o vilão de Final Fantasy VIII é o tempo.
O que foi, isso é o que há de ser; e o que se fez, isso se fará; de modo que nada há de novo debaixo do sol.
Há alguma coisa de que se possa dizer: Vê, isto é novo? Já foi nos séculos passados, que foram antes de nós.
Já não há lembrança das coisas que precederam, e das coisas que hão de ser também delas não haverá lembrança, entre os que hão de vir depois.
Eclesiastes 1:9-11
Desenvolvendo: Ultimecia, através de algumas possessões no passado, está tentando transformar o tempo, que é uma linha (ou várias, talvez uma raíz), em um ponto, pois assim todo o sofrimento do mundo irá acabar. Os heróis de Final Fantasy VIII são controlados pelo destino para impedirem que ela consiga fazer isso, porque o destino nada mais é que o Espírito Santo do tempo. Ele se certifica de que tudo estará sempre no lugar certo.
A lógica dela é a seguinte: o tempo é o que faz as pessoas sofrerem, porque todas as idiossincrasias são rechaçadas através de contrastes, e toda a dor é um pouco mais que imediata. Sua raça foi perseguida, ao mesmo tempo que o próprio destino a colocou no caminho de se transformar na vilã que tentaria destruir o tempo e seria impedida por um grupo militar que só existe para impedi-la. Tal grupo militar, por sua vez, descobre que sempre se conheceu, sendo também vítima do destino, fadado a reforçar as linhas que foram previamente estabelecidas como lugares de onde se agarrar, balançar, mas nunca soltar. Transformando essa linha em um ponto, onde todas as pessoas têm acesso a todos os lugares do tempo simultaneamente, cada um pode escolher que momentos irá viver, na ordem que quiser, ainda passando por eventos previamente estabelecidos mas não mais lineares. Ultimecia não quer destruir o destino como acontece na modernização da tragédia grega padrão que é Final Fantasy XIII, ela quer destruir o tempo para controlar o destino, o que é um objetivo bem condizente com sua existência injustiçada e não necessariamente negada. Para negar a negação de existência, é preciso negar a existência, e só assim a liberdade pode ser alcançada de novo.
O problema é que novelos ainda são compostos de linhas, e algo precisava acontecer até a contração do tempo existir. Algo precisa ocorrer dentro do tempo para o tempo ser destruído (ou afirmado). O determinismo é meio corno, olhando assim, mas ele também é conformado em todas as suas vitórias, aceitando as coisas negativas e positivas apenas como Reais. Ele quer que nós, os principais habitantes de sua malha, alcancemos a mesma “clareza”: aceitar que as coisas existem, em vez de lamentar decisões tomadas, erros, ou mesmo comemorar acertos. O tempo é estoico de uma maneira adolescente. Ele também não tem escolha. Portanto, ninguém pode ter. O dono da bola.
O tempo sempre continua independente da gente. Nós, entretanto, somos criativos demais para não sofrer. Nós imaginamos outros tempos. Imaginamos tempos em que sims são nãos, que nãos são sims, que talvezes são sims ou nãos, em que os erros que cometemos à parte das palavras que dissemos não tenham ocorrido, e que os erros que os outros cometeram tivessem consequências maiores. Imaginamos que acabamentos teriam continuações, que novos começos fossem derivativos, que vontades fossem negadas e que desejos fossem controlados e que censuras fossem indutadas. A graça de toda essa imaginação é justamente não termos as respostas. Sabermos que para cada pergunta feita, não apenas escolhemos algo para responder como escolhemos não escolher todas as outras possibilidades. O tempo, de certa forma, permite o infinito em sua restrição: afinal, se fosse livremente atravessável, seria apenas redutível nas mais diversas variações. É o que é, e o que foi, e muito possivelmente o que será também.
Videogames são viagens no tempo. Nós voltamos no tempo sempre que erramos. Nós conversamos com viajantes do futuro que já passaram por onde estamos passando para sabermos onde ir toda vez que procuramos dicas na internet. Nós revisitamos tempos que gostamos ao recomeçar um jogo e negamos tempos que não gostamos ao abandonar um. E todos os personagens de todos os jogos são vítimas do nosso controle; nós somos o tempo para eles, e sua programação é o destino. Final Fantasy VIII é um jogo que queria Existir, e portanto usa o seu próprio determinismo para destruir o que o torna, por si mesmo, um jogo.
Ao vencermos Ultimecia, liberando-a das amarras do tempo, ela está livre para ser o que quiser. Ela cumpriu seu destino e a recompensa é a liberdade. Não é mais um ser atrelado a um ciclo de ataques que pode facilmente ser negado caso tenhamos 99 Meltdowns em nosso menu. Ela pode ser qualquer coisa agora. Seu ciclo de destino será repetido todas as vezes que alguém abrir o jogo e chegar até o final, e todas as vezes ela será liberta para ser o que quiser, enquanto todos os outros personagens irão continuar no ciclo perpétuo de interação entre si mesmos, participando da mesma festa que toca durante os créditos, comendo os mesmos cachorros quentes, repetindo a mesma dança e olhando pela mesma varanda. A morte fez Ultimecia vencer, e sua libertação do destino ter sido causada por pessoas que estão justamente seguindo seus destinos. É o objetivo definitivo, que foi ela mesma que traçou, vencendo tanto o tempo quanto controlando o destino. E nos controlando, já que nós é que éramos o tempo dela e somos nós que instrumentalizamos os personagens para cumprirem suas tarefas. A ideia de Nirvana digital não foi explorada pela primeira vez em Final Fantasy VIII (desde antigos Megami Tensei, até seus livros progenitores, e as mentes de quaisquer pessoas que deixaram seus legados na área de tecnologia), mas talvez tenha sido o primeiro personagem a vencer a tormenta de estar presa a este ciclo de mentiras que é a narrativa como um todo.