Deixe a magia morrer
Algumas histórias na ficção possuem em sua estrutura uma conclusão ou objetivo bem definido — geralmente a parte interessante é observar como as coisas se desenrolam. E depois que chegamos na tal conclusão, pá! acabou, estamos satisfeitos e podemos partir para a próxima. Você consegue perceber exatamente o quão contidas em si essas histórias são. Eu adoro pensar sobre histórias que por algum motivo são estruturadas assim e apesar disso continuam em suas “Pós-histórias”, persistindo contra as regras determinadas pelas pessoas que gostam de coisas acabando.
David Foster Wallace uma vez escreveu, em seu artigo “David Lynch Keeps His Head”, que a parte interessante da segunda temporada de Twin Peaks era que o grande mistério e motivação da série (quem matou Laura Palmer) foi revelado logo nos episódios iniciais da temporada, no sexto de vinte e dois episódios, para ser exato. Depois disso, a série abraça de uma vez o estilão de novela e decide se focar muito mais no pessoal de Twin Peaks tentando retomar suas vidas após o assassinato do que no drama policial que permeia a primeira temporada e o começo da segunda.
DFW comenta como a grande mágica de Twin Peaks, e quiçá das obras do Lynch, era não explicar quem/o que era o assassino de Laura Palmer ao mesmo tempo em que coisas malucas sobrenaturais aconteciam na cidade — inclusive faz questão de ressaltar que talvez nem o próprio Lynch queira lidar com tais respostas. Assistir a segunda temporada de TP é como se você estivesse assistindo um mágico revelando por acidente como ele armou a mágica antes de apresentar tudo — o resto da apresentação é ele sem jeito tentando colocar as coisas no lugar novamente enquanto tudo desmorona. Assistir esse tipo de coisa na TV não só é raríssimo, especialmente com alguém talentoso como Lynch, mas também é bastante interessante (coitado).
A partir do momento em que a magia de TP desmoronou, uma outra faceta de seu universo se abriu, que às vezes pode até ser meio péssima, mas que também foi engraçada, maluca, confortável (!), diferente e quando chegou a hora de finalmente encaixar as peças que essa pós-história bagunçou no lugar, ainda conseguiu culminar em Um Dos Finais Mais Top Da Televisão.
Claro que esse foi um belo dum acidente, onde TP foi vítima de diversas circunstâncias que culminaram na existência dessa temporada estranha. É difícil apontar intencionalidade em ocorrências de histórias assim, porém confio em meu tato de que os próximos dois exemplos são não só de histórias que persistem em continuar, mas que também fazem isso de maneira a enaltecer os temas delas de uma maneira bastante interessante e criativa.
MENTIRAS CRESCENDO
Big Little Lies é uma série da HBO que mal se introduz e já traz o arco principal da história: o assassinato de uma pessoa que é o resultado da relação e conflito entre algumas das personagens centrais da série. Nós observamos a vida & rotina das mães (as personagens envolvidas são todas mães) enquanto seus problemas sejam familiares, profissionais, de relacionamentos vão pouco a pouco convergindo para o final da história, que é o assassinato. A série parece muito mais um filme de oito horas do que uma série, com o final encaixando tudo de uma forma fantástica e terminando no dito evento do assassinato, é bem intenso. E por dois anos ficou por isso mesmo, mas nesse ano saiu uma segunda temporada que se passa pouco tempo após o tal final.
A segunda temporada de Big Little Lies é… curiosa. Ela segue aquela filosofia de pós-história também, encaixando um novo arco em cima da maneira como cada uma das mães lida com o acontecimento tão falado na primeira temporada. A vida continua depois da conclusão, vários problemas vão aos poucos se acumulando, o que faz com que a gente entre em contato com diversos aspectos das protagonistas que não tinham como ser explorados dentro do escopo da primeira temporada. Os momentos intensos dessa temporada quase nunca são por Acontecimentos Poderosos, mas simplesmente pela reverberação dos acontecimentos anteriores na vida dos personagens.
O interessante aqui é a quebra da conclusão anterior: o final da primeira temporada é… feliz, digamos assim. Muitas coisas foram deixadas para trás por motivos temáticos e porque a maneira como as personagem se conciliaram no primeiro fim é muito mais importante que um personagem ter traído outro. Durante a segunda temporada esses probleminhas retornam e pouco a pouco vão crescendo, como uma pequena coceirinha que logo se torna um vermelhão na pele e se entrelaçando até virar uma bola de neve esmagadora que engole cada uma das protagonistas e vai tornando a experiência de assistir aquilo cada vez mais sufocante. Os problemas nasceram, obviamente, de mentirinhas plantadas por cada uma das cinco protagonistas.
FALSO BIG BOSS
Um dos pilares temáticos do último jogo da série Metal Gear Solid é vingança. No jogo anterior (Peace Walker), você constrói sua base militar independente de soldados mercenários só para na introdução de Phantom Pain (que também é meio que outro jogo, Ground Zeroes) ter ela completamente destruída pelo novo vilão, Skullface. Desde o começo de Phantom Pain, onde você acorda 10 anos depois do acontecimento, só existem dois objetivos: reconstruir sua nação/base e se vingar pela destruição causada na introdução.
Conforme você vai jogando, nas suas primeiras 30 horas (é um jogo bem grande!!) você conhece personagens novos, constrói sua base, se apega aos soldados, à moça com poderes, ao Liquid Criança (Never Be Game Over), às músicas dos anos 80 e até à variedade das missões no mundão com umas bases deliciosas de se esvaziar. Tudo é muito confortável e familiar, não é à toa que existem 232940 piadas do Ocelot e Kaz serem os pais de Venom Snake nesse jogo.
Até que você invade a base do Skullface e se vinga. E o jogo acaba.
Assim, TPP funciona mais ou menos como uma série: toda missão do jogo tem uma abertura mostrando quem serão as estrelas daquele episódio e quando você acaba aparecem os créditos e tudo o mais. Ele segue essa estruturinha muito bem até esse ponto do Skullface morrendo, depois tudo vai por água abaixo. O jogo é dividido em dois CAPÍTULOS além das missões, um com tudo o que acontece até o ponto da vingança realizada (se chama, adivinha… REVENGE) e o outro (RACE) é tudo o que acontece depois.
[Acabei de perceber um padrão nesse texto: todas as histórias que citei fizeram a mesma coisa na SEGUNDA TEMPORADA (ou equivalente), juro que não foi intencional, foda-se completamente]
O segundo CAPÍTULO de TPP inverte todas as coisas: praticamente só acontecem coisas importantes dentro da sua base enquanto as missões normais são atividades banais e às vezes até versões repetidas das missões anteriores. Você consegue ver a história se deteriorando pouco a pouco a partir da falta de motivação do personagem pela necessidade de ter alguma motivação. Enquanto no fundo dessa busca através do vazio tudo começa a se deteriorar dentro da base — aquele conforto feliz vai deixando de existir para uma atmosfera muito mais análoga aos pôsteres a la 1984 do Big Boss na base. Revoltas acontecem, membros queridos de seu exército vão embora, intrigas bizarras surgem no meio do nada, seu robozão é roubado, até você simplesmente perder tudo o que tornava o jogo agradável anteriormente.
A sacada do tema do jogo ser vingança não é tanto pelo fato de você ir atrás do Skullface mas sim pelo o que vem depois: a verdadeira história de vingança de TPP é o personagem tentando encontrar alguma outra motivação para onde possa se segurar depois de cumprir o único objetivo do qual ele consegue se lembrar de existir e isso acaba levando a ruína de tudo em volta do Venom, quando chega na missão final, você perde até si mesmo. Os créditos passam, mas o jogo continua: se depender do Venom Snake, ele nunca vai acabar.
A magia morreu, mas às vezes o divertido é justamente quebrar tudo só para bisbilhotar o que há por trás do truque ao invés de focar na mágica. Dar uma chance ao desastroso.