Clones em um planeta aqui do lado
Em certo momento aí na história do site, escrevi de como jogos são um simulacro das coisas que não podemos/conseguimos fazer. Mais, na verdade: coisas que somos particularmente ruins em fazer. Sem nenhuma base teórica nem factual, sigo nessa afirmação, mas dizendo que, além de ruins em sobreviver, somos também ruins em coordenar a sobrevivência dos outros.
A gente tenta, claro. Estamos aí criando protocolos e inventando regras e punindo transgressões, tudo na intenção de que a raça humana se mantenha viva e produtiva — estar bem é opcional. Então sugerimos atividades e treinamos empregados, então autorizamos só fulano e ciclano a acessar coisas específicas ao invés de deixar tudo liberado pra qualquer maluquinho, então identificamos necessidades e determinamos ciclos de ações que precisam ser cumpridas para tais e tais necessidades serem supridas. Mas assim: ninguém é onisciente, as pessoas fazem o que querem, e no fim das contas sobreviver é subjetivo. Então, apesar de válida a tentativa, a sobrevivência assistida é quase tão falha quanto a sobrevivência individual, na ilha deserta, vivendo de cocos.
Caímos nos jogos e, oniscientes, mas não muito, construímos comunidades e controlamos bonequinhos e equilibramos um sistema que na realidade nunca foi feito para estar em equilíbrio, e assim coordenamos o todo. Como deus, garantimos a sobrevivência de todas as pecinhas logo abaixo.
Ou seria o caso, se soubéssemos o que estamos fazendo, mas especificamente em Oxygen Not Included, tal qual na vida real, física é difícil e química é impossível.
Você inicia cada partida em um asteroide gerado de qualquer jeito, com três clonezinhos previamente selecionados, e um mundo para explorar — que você não explora, quem explora são os clones, você só manda. O asteroide nem sempre é hostil, com instâncias que podem te dar água e oxylite em abundância, facilitando os primeiros dias em jogo e permitindo mais maleabilidade na busca de recursos e novos biomas além do inicial. Mas, eventualmente, a hostilidade do mundo selvagem começa a rastejar para dentro da sua base. Primeiro na forma de carbono, oxigênio poluído, cloro, hidrogênio puro. Então como calor, com temperaturas cada vez mais insuportáveis que nem os sistemas mais mirabolantes de controle conseguem equilibrar. O que era uma experiência zen se torna caótica quando você não faz as pesquisas necessárias, planta alimentos diversificados, distribui pontos de forma focada nos seus bonequinhos. ONI é um jogo de vários erros para chegar em um acerto, e temos como responsabilidade saber quando eliminar uma simulação em prol de uma nova, mais saudável, pensada do início.
Apesar do caos, é muito bom e satisfatório ver seus asseclas fazendo as coisas tão certinhas, quando você provê os meios para que eles acertem, e destruindo absolutamente todas as formas de existência da partida caso você não saiba comandar. Jogos da Klei como um todo têm essa magia de te fazer sentir poderoso e impotente de forma tão paralela e igual que é quase como a vida real, simulada e punitiva.
[MOMENTO EXPERIÊNCIA PRÓPRIA]
Em uma partida muito específica, de uma sessão que já explodi faz tempo porque esse é meu M.O. nesse tipo de jogo, descobri meus bonequinhos ficando doentes sem motivo nenhum. Eles iam lá de boas, faziam comida gostosa de larva de mosca ou sei lá o que dá naqueles vasinhos, comemoravam com apertos de mão elaborados, comiam, e uns dois dias depois estavam morrendo de diarreia extrema e completa. E foi depois de um período de tempo que me envergonho da extensão que aprendi que não é porque você FILTRA a água que ela está livre de germes. Ferver é bom também.
Por isso que hoje tomo água direto da torneira.
[/MOMENTO EXPERIÊNCIA PRÓPRIA]
Oxygen Not Included não é o primeiro nem o último jogo do universo em que o exemplo da fazenda de formigas se aplica. Você, onisciente mas não muito, enxerga pelo telescópio todo ecossistema que cerca seus bichos. Eles poderiam ser formigas, poderiam ser bactérias, poderiam ser cachorrinhos, mas são clones de pessoas, mesmo. E cada um desses clones, com nomes e carinhas engraçadas e atividades favoritas, precisa de você pra dizer o que fazer, quando fazer, e o que gerar. Mais que fazenda de formigas, é um pouco como maternidade, também. Eventualmente eles sabem que o banheiro é ali e que têm que lavar as mãos porque a placa diz que precisa, comem nos intervalos indicados e dormem um número saudável de horas. E tudo bem se seus clones/marionetes/bonequinhos se escondem pra chorar de vez em quando, quando o estresse do trabalho é tanto e as condições de vida são tão precárias que é o que resta — regando as plantas e cavando buraco, podem fazer o que quiserem com seu tempo livre.
Assim como sobrevivemos nos jogos, mesmo sendo ruins de sobrevivência real, fazemos o grupo sobreviver, mesmo sendo ruins em coordenar sobreviventes (ou o estado real dessa sobrevivência). Por isso jogamos em vez de governar no mundo. Já pensou o que poderia acontecer se tivéssemos autonomia suficiente como espécie pra mandar e desmandar em tudo que acontece, sem prever ou prevenir a vingança triunfal da natureza em cima de toda ação danosa que tomamos? Consigo nem imaginar como seria. Que bom que existem videogames.