ODEIE REGRAS
Eu tenho um desprezo imenso por regras. Aliás, será? Acho que não. Eu tenho um desprezo imenso pelo efeito coercitivo das regras, a ameaça da consequência, o espectro invisível e denso que anda de cavalinho na gente: punhal na goela, sorriso no rosto. Regra é um perigo.
É por isso que é tão estranho o amor que os outros têm por regras, essas regrinhas formaiszinhas estruturantezinhas. Prisoezinhas estéticas, prisoezinhas de toda sorte, elas são abominavelmente frágeis, mas excetréticas infelizmente.
Vamos à judiação de uma: “não conte, mostre!” (sempre no imperativo, essas regras, fingindo autoridade).
O mais sincero dos Assistidores-De-Crítico-De-Youtuber admitirá saber do que se trata essa regra. Imagino que o mais mentiroso e enganador deles também, afinal, há lição mais inc(s!!!!)ipiente no mundo da análise narrativa? (Quem sou eu pra dizer?).
Tempos atrás escrevi sobre Wolfenstein: The New Order, ou Wolfenstein: Dos Novos, O Primeiro, ou Wolfenstein (2014), ou, até o resto do texto, Wolfenstein, e notei que o mais impressionante do jogo era a dissimulação e dissociação nas escritas interna e externa de William Joseph Blazkowicz, ou B.J Blazkowicz, ou (…), ou, até o resto do texto, BJ. BJ é, e, sinceramente, historicamente foi, um cabeça de bagre. Ogro, brutamontes, personagem de Stallone em algum filme com o qual ninguém se emocionaria e no qual milhares de inocentes e culpados morreriam. Os culpados, claro, pelas mãos de Stallone. Os outros personagens pretensamente nem tão intelectualmente capazes o tratam como igual e os Mais Inteligentões E Sensíveis o tratam como bem burro, independentemente das conexões emocionais estabelecidas entre refugiados se escondendo nas entranhas da capital totalitária que ameaça o mundo.
Existe um outro personagem com tratamento semelhante, mas mais extremo: Max Hass. Max é um gigante com dano cerebral severo, ele tem um buraco na cabeça, e esse é o motivo pelo qual ele só tem seu próprio nome no vocabulário, age como um infante gigante e é bem intencionado. Ele foi criado por sua avó, que o protegeu o quanto pode do regime nazista eugênico, um perfil que o fez pacifista e protetor: um ursão do bem. Dá muito dó.
Max tem seus altos e baixos narrativos, ele esconde um monte de coisa imperativa pra atividade da resistência e dá um trabalhão pra todos, mas é uma alma solvidamente pura e salva seus companheiros quando tem a chance, mas sua riqueza e qualidade é mostrada só nesses pequenos vislumbres contextuais, quase acidentais. Você sempre gosta de Max e, quando ele se destaca, “eu sempre gostei de Max” é o que se pensa, novamente.
BJ por desígnio é diferente, primeiro por conta da natureza videogamística de nossa interação com ele, afinal por 90% do que é o jogo BJ somos nós, e, segundamente, por conta da dissociação nas escritas interna e externa citadas antes. Para os outros personagens BJ é apenas uma versão mais funcional de Max, seus atos de bravura, heroísmo e sacrifício são seus definidores, mas nós, nós os jogadores, temos o poder de ver mais profundamente. Ele nos conta quem é. Ele nos conta quem somos.
Os sonhos poéticos e aspirações bucólicas de BJ são o contar em sua forma mais vulnerável, algo que se conta para si, uma confissão, e a dele é a confissão de um soldado sem qualquer fagulha de esperança. Algo cuja prisão interior é inescapável.
O que nos é contado por Paul Atreides e outros personagens-perspectiva em Duna é diferente em natureza, mas igualmente talentoso. Duna é uma história teatral, intensamente dramática, muito nela acontece sem resultados externos e o externado é um reflexo de processos internos, todos diagramados e destrinchados, seja pelo próprio personagem ou por narrador-terceiro.
O mundo de Duna é um em que seus habitantes buscam e buscaram, por extremos, a especialização, controle e maestria sobre variados aspectos humanos, mentais e físicos (que, no fim das contas, em Duna, são o mesmo). Existe uma instituição feminina matriarcal, as Bene Gesserit, cuja doutrina é a eliminação do instintual, toda função corporal humana, seja ela fisiológica ou psicológica, deveria ser controlada pela vontade: respiração, fluxo sanguíneo, batimento cardíaco, dilatação de poros, todos estritamente controlados pela mente consciente, só assim o ser humano deixa de ser um Mero Animal.
Paul, discípulo na doutrina por obra de sua mãe, Jessica, reconta suas lições:
“Não se obtém comida-abrigo-liberdade somente com o instinto”… a consciência animal é incapaz de se estender além do momento presente e não conhece a idéia de que suas vítimas possam se extinguir… o animal destrói e não produz… os prazeres animais permanecem próximos dos níveis de sensação e evitam o perceptivo… os humanos necessitam de uma tela de fundo através da qual possam perceber seu universo… consciência focalizada por escolha, isso produz a sua tela… a integridade corporal segue o fluxo sanguíneoneural de acordo com a mais profunda consciência das necessidades celulares… todas as coisas/células/seres são inconstantes… lute pela permanência de fluxo interno…”
A lição acima é recitada de forma não apenas a caracterizar o personagem, não é apenas um pano de fundo, o agir interno de Duna é o mecanismo da história e dos personagens, recitar a doutrina é fazer a doutrina, como fica claro em outro trecho famoso em que dois impulsos internos lutam para fazer o corpo agir e o mais poderoso vence:
“Eu não temerei. O medo é o assassino da mente. Medo é a morte pequena que traz a obliteração. Enfrentarei meu medo. Não permitirei que ele passe sobre mim ou através de mim. E, quando ele se for, voltarei minha visão interna para olhar sua trilha. Por onde o medo passou nada restou. Apenas eu permaneço.” “A dor pulsava em seu braço enquanto o suor aparecia na testa. Cada fibra de seu ser implorava pela retirada da mão daquela abertura flamejante… mas… o gom jabbar. Sem mover a cabeça ele tentou mexer com os olhos, para ver aquela agulha terrível junto ao seu pescoço. Sentiu que estava respirando de um modo ofegante, tentou se controlar mas não pôde. Dor! Seu mundo esvaziou-se de tudo, exceto a mão imersa em agonia e aquela cara ancestral a observá-lo, a alguns centímetros dele. E seus lábios pareciam tão secos que tinha dificuldade para separá-los. A queimadura! A queimadura! Pensou que podia sentir a pele negra se contraindo e soltando de sua mão agonizante, a carne frigindo e caindo até que somente restassem ossos carbonizados. E então a dor parou. Parou como se um interruptor houvesse sido desligado.”
Os diálogos entre personagens são também entremeados de meta-diálogos, quase como em batalhas de anime, conversas não são fluidas e espontâneas: é como se entre cada passo de uma dança cada um dos dançarinos purgasse de si cursos inconscientes de ação, toda interação entre personagens é, acima do plano deles, uma interação entre crenças, ensinamentos, tradições, culturas e histórias, bem como cada personagem é um avatar de cada um desses elementos. Paul, por suas ações e o cogitar delas, nos ensina mais sobre os Atreides do que qualquer etnografia poderia. O contar em Duna é o que nos permite ver as partículas do universo e as leis que as regem.Como eu disse, o perigo maior das regras são suas forças coercitivas, o espectro, as regras não podem ser mais poderosas que nós. Acho que o melhor jeito é pensar nas regras como a colher de Matrix, elas não existem e elas não têm poder. O poder é seu, e seu poder é o talento.