Esse texto não é sobre nenhum jogo em particular
Enquanto começo a escrever isso, minha cidade passa por uma das noites de maior frio que consigo lembrar nos últimos anos. Esse clima já está aqui há alguns dias (ou algumas semanas se levarmos em conta suas formas menos decididas e insistentes) e carrega consigo aquela vontade de inação e anseio pelo torpor. Em épocas assim dormimos mais e sonhamos mais, e quando sonhamos mais do que o normal acabamos lembrando que estamos nos acostumando a sonhar menos.
No momento que eu escrevo o segundo parágrafo nem está mais tão frio assim. O clima já começa a dar indícios de melhora entre o espaço demorado para escrever outro parágrafo. Já me foi perguntado algumas vezes como se faz para começar a escrever um texto, e é bem assim. Às vezes é mais fácil do que parece, em outras é muito mais difícil do que deveria ser. O ponto em que você percebe o que é o texto que você está escrevendo, normalmente é a hora que você escreve até o final. Esse aqui por exemplo deve ser sobre ele mesmo, sobre a escrita em si e sobre mim.
Sou muito egocêntrico, algo que acaba respingando nas coisas que eu escrevo. Mas, seja isso reflexo do que sou, ou uma verdade que percebo independentemente da minha própria composição, acredito que deveria ser assim para o que todo mundo escreve. Se não se consegue ver ao menos um pouco da pessoa espalhado nas suas palavras, sinceramente não entendo qual o apelo da leitura disso. Essa afirmação é verdadeira até para personalidades que eu não gosto: adoro ler coisas de pessoas que eu odeio, pois os pontos que me levam a não gostar de tal pessoa ficam completamente expostos ali para meu prazer. Ler algo deve ser prazeroso em algum nível, não importam as relações entre o leitor e o escritor.
Mas escrever, em contrapartida, não necessariamente precisa ser prazeroso. Na verdade, por muitas vezes é pesado e difícil escrever o que o texto pede que você entregue. Algumas vezes enquanto se escreve percebe-se até mesmo coisas que não sabíamos estar dentro de nossas cabeças, formulações que sem o ato de começar a escrever jamais tomariam corpo. Percebemos e criamos coisas que estavam dentro de nós todo o tempo, apenas esperando uma ponta de oportunidade para sair de onde estavam para migrar à nossa realidade.
Quanto mais o tempo passa mais facilmente se nota essa mensagem que o texto está sendo escrito quer passar. A conexão fica mais fácil e o pacote de requisitos é entregue ao escritor de forma mais consistente. Entretanto, por muitas vezes ele é difícil de digerir ou de se aceitar. O passar do tempo também traz outras verdades, e a idade invariavelmente acaba chegando como um inverno um pouco mais frio que nos faz lembrar que estamos sonhando menos. As ideias dentro de você são mais fáceis de se interpretar e transmutar, mas o combustível para as mesmas serem significativas começa a ficar cada vez mais escasso.
Quando comecei a escrever imaginava erroneamente ser muito mais do que eu era (e talvez hoje imagine o oposto da mesma forma enganosa), mas esse mesmo engodo faziam os sonhos fluírem. Imaginava que o que eu escrevia poderia ser impactante em um nível muito grande, que eu escreveria uma série de livros, talvez até que escrever seria não um passatempo, mas uma profissão. Hoje já tenho mais ciência do que posso alcançar, os livros provavelmente nunca virão, e abandonar minha profissão atual seria uma loucura que não tenho o privilégio de poder cometer.
Então não apenas os sonhos começam a se desfazer, mas novos sonhos dificilmente são criados, talvez por se perceber a impossibilidade ou improbabilidade dos antigos. De certa forma meu último sonho neste sentido proposto aqui foi o próprio dislu.do, que agora fazem quase dois anos que estou sonhando junto com os outros membros (e talvez vocês). Essa última parte sobre mim não é simples chororô, mas é importante pois as vezes quem lê e aprecia o que leu acaba fazendo uma imagem do escritor. Creio que a maioria das pessoas que lêem meus textos acabam vendo uma pessoa decidida e confiante, ao menos nessa área literária; portanto, para quem gostaria de ouvir a partir de mim sobre como escrever, é essencial mostrar que a realidade não é essa.
Hoje faço trinta e cinco anos e não sei até quando conseguirei encontrar esse balanço que me permita extrair energia para continuar passando em mais parágrafos o que o primeiro parágrafo pede de mim. Não gostaria que continuasse até que todos os sonhos acabassem, nem me estender até voltar a achar ser mais do que sou – só que com idade avançada (como acontece muito no nosso meio). Mas até esse dia, pretendo seguir fazendo o possível para que o próximo inverno não me lembre do mesmo que esse lembrou, ou que a discrepância da comparação do passado e presente não seja tão grande no futuro.
Mas o futuro é uma abstração em constante mudança, e quem sabe quando eu pare para refletir novamente o clima gelado já tenha se transformado em algo mais ameno e aconchegante. O que fica é a intenção de tentar dizer alguma coisa por trás de um monte de egocentrismos; e de entreter, seja quem for que esteja lendo, mesmo num texto melancólico como esse.
Talvez amanhã a gente consiga sonhar um pouco mais, mesmo longe do frio.