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Ame seu quarto

O quarto é o que encapsula uma boa parte de quem somos nós, é o ponto inicial de todos os dias e também o ponto final. É onde as coisas importantes estão guardadas. Convidar alguém para seu quarto é dar uma chance para aprofundar o relacionamento com a pessoa. Você organiza seus pertences, livros, jogos, enfeites, a cor das paredes, onde seu computador está em relação as outras coisas do quarto. Ter um quarto é um projeto, um compromisso, uma forma de se expressar, é onde as memórias e experiências encontram suas gavetas.

Soma é um videogame que faz questão de jogar na sua cara com toda a força a ligação Humano – Quarto, criando uma familiaridade logo nos primeiros momentos de sua história, reservando quanto tempo você tiver livre para ficar interagindo com tudo o que há no pequeno apartamento do protagonista. Você pode mexer nas escovas de dentes no banheiro, nas revistas de Simon, pode ver as mensagens no telefone, dar uma olhada na cozinha, revirar as gavetas. Esses primeiros momentos de calmaria e segurança são importantíssimos para a espiral de acontecimentos que ocorrem logo após a introdução – quando os elementos de ficção científica e terror tomam os holofotes do apartamento e vagão de metrô.

Geralmente não me interesso tanto assim por jogos de terror sem combate e talvez a exceção de Soma veio do fato do terror dele vir muito mais de seus temas do que seus monstros. Mecanicamente, a temática central é a observação. Soma funciona mais como um tour dentro daquele fim do mundo onde geral morreu. Todas as coisas que Simon faz dentro desse mundo tem relação com o que significa ser humano, presenciando apenas as consequências dos acontecimentos que levaram ao fim do mundo.

O terror de Soma vem da sensação de não estar existindo dentro de um corpo humano. Momentos onde conversar com robôs que não fazem ideia de onde estão, nem de que estão fora de seu corpo original vão se correlacionando com os momentos onde têm inimigos. Suas maneiras de interagir com o mundo são sempre contemplativas: todas as vezes em que você encontra um inimigo, o conflito em si não é interessante, o interessante é observar a situação. Cada um desses bichões que distorcem sua visão e possuem barulhos péssimos horríveis são a parcela remanescente das tentativas de uma IA preservar alguma noção de ser humano. Ser vivo é estar vivo, não importando em quais circunstâncias.

Lá pela metade do jogo aparece um dos responsáveis por mesclar corpos humanos com as substâncias e temos a experiência que todas aquelas pessoas que estão grudadas pelo cenário de uma maneira bem H.R Giger das ideias passaram/estão passando. Sua consciência é transferida diretamente para o quarto, do começo. A noção de conforto eterno absorvida pelos milhares de algoritmos que passaram pelas IAs que permeiam o mundo de Soma é a de que existir também é possuir um quarto.

Simon tem uma companheira, Catherine, que foi a criadora de um dos projetos para preservar a humanidade no futuro de Soma. Os dois são esperançosos, o tanto que dá para ser, em realizar o projeto de Catherine. Os dois são robôs mas a dinâmica entre eles traz, curiosamente, uma humanidade absurda para a atmosfera geral: suas interações são genuínas, Catherine é sempre conversadeira (que, segundo fitas e anotações, é o extremo oposto da Catherine humana). A relação é abalada quando Simon começa a compreender a perspectiva mórbida de que viver no robô não significa apenas transferir sua consciência, mas abandonar o Eu Anterior. Você, como jogador, é obrigado a fazer isso em um momento do jogo e trocar de corpo. É desconfortável. Você observa o corpo anterior confuso e sozinho no mundo de Soma enquanto o Novo Eu seguirá com Catherine. É na conversa após todas essas mazelas que Catherine descreve o momento mais marcante de sua vida, como humana: a sensação de observar a cidade do telhado de sua casa, sentir o vento, observar a paisagem e pessoas e se sentir conectadas ao mundo, começando a passar o tempo no telhado muitas outras vezes, como se aquele fosse seu quarto. Outra personagem também lhe apresenta o quarto dela, através de fotos e memórias de seus amigos. Para ela, sem esse quarto não vale a pena continuar existindo.

Em Soma, voltar para o seu quarto jamais será o ponto final, é apenas o ponto do meio e é nessa temporalidade das coisas em que culminam todos os outros aspectos do jogo. Ter a chance de observar o mundo sem quartos é completamente tenebrosa. A opção de criar um alojamento virtual não é a ideal e o jogo termina com a sensação amarga de que deu certo, mas para isso outros Simons ficaram para trás. Viver é sentir medo das coisas não serem eternas, também é o processo de se conformar com isso. Mesmo os escaneamentos entrarão em terror completo no momento em que sua finitude entrar em cheque, talvez eles se revoltem e criem novos projetos de simulações dentro de simulações dentro de simulações e quem sabe a humanidade se preserve, através das sensações de se estar em um quarto.

Lucasq
do j-pop ao thrash metal do kingdom hearts ao call of duty. Final Fantasy XIII não é ruim, você que é feio.

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