No verão, use a internet
Todo filme de Mamoru Hosoda é o filme da vida dele, acredito eu. Tá, talvez não A Garota Que Conquistou O Tempo, por ser uma adaptação literária, mas Digimon: O Filme, por exemplo, é com certeza – embora suas características ainda não estivessem tão lapidadas no Digimon. Aliás, a discrepância de um episódio normal de Digimon para os poucos que são dirigidos por Hosoda é absurda, recomendo muito. Summer Wars, filme que veio após essa empreitada, pode ser considerado tal lapidação de muitos elementos daquele filme, tanto que ambos possuem muitas semelhanças (quase idênticos!) na parte tecnológica da história.
Digimon: O Filme foi sobre um vírus que invade o Digimundo e começa a se alimentar das informações contidas lá, buscando sempre mais e mais até chegar ao ponto de se alimentar e conseguir manipular dados salvos em bancos, computadores, celulares e transformar o mundo num caos. Summer Wars não se envergonha em tomar a mesma proposta de Digimon com seu próprio ‘Digimundo’ chamado OZ e um vilão que também se alimenta de dados e informações, uma IA chamada Love Machine. A maior diferença desse aspecto dos dois é onde o foco está: enquanto um é inteiramente sobre sua parcela virtual, o outro a usa para sementar e complementar outros temas, de família e contato entre gerações.
Eu gosto de lentidão. Atividades rotineiras num geral são uma forma de expressão meio inconsciente de individualidade. Através do nosso dia a dia conseguimos mostrar quem somos. Uma das utilidades da rotina dentro da ficção é reafirmar um personagem, um mundo, uma convivência. Em Dragon Ball, a primeira vez em que vivemos a rotina dos personagens é no arco dos Entregadores de Leite, onde Goku e Kuririn realizam um treinamento com o Mestre Kame em artes marciais, que nada mais é que viver o dia a dia, trabalhar, descansar, estudar, comer.
Outros momentos de DB antes disso já tinham demonstrado Goku interagindo com O Mundo Num Geral, mas essa é a primeira instância onde vemos Goku morando com outras pessoas, entrando em contato com as tarefas de seus trabalhos e como sua força e inexperiências sociais acabam influenciando as interações, moldando ainda mais seu personagem e os outros com quem ele convive. Por exemplo, a Lanchi e o Kuririn foram muito bem estabelecidos só com esse pequeno arco. Dragon Ball tem essa dinâmica dos momentos Desenho de Luta serem complementados pelos momentos mundanos e rotineiros de seu universo. Ver aqueles personagens que vivem numa realidade totalmente diferente da nossa em situações mais que comuns para nós é um deleite por si só.
Summer Wars é basicamente uma reunião de família gigante no domingo para fazer churrasco.
A família é a de Natsuki, garota que estuda com o personagem principal Kenji e pede para ele se fingir de namorado dela durante os dias em que ela passará em sua cidade natal para reencontrar os parentes a fim de agradar sua avó apresentando um futuro marido, aquela coisa toda de comédia romântica. É legal, inclusive, que essa parte da mentira não dura muito, só durante o primeiro ato e todos acabam descobrindo a verdade, aí a premissa acaba servindo mais como uma porta para conectar o personagem ao ambiente da família de Natsuki, o universo do filme. Todas as cenas da apresentação da família, cobrindo o primeira dia da visita, são carregadíssimas de informações, sempre tem alguém fazendo alguma coisa ou diversas pessoas presentes, sempre dando destaque à maneira de cada uma das tias, tios, primos e avó interagirem com Natsuki, enaltecendo alguma característica importante dos parentes. A culminação disso se dá ao jantar, onde todos reúnem à mesa para reagir ao namoro da protagonista e cada um tem seu momentinho de destaque nos diálogos. É bem autêntico e representa muito bem como essas reuniões geralmente são. Ajuda também a encorpar essas cenas o fato da arte do filme ser lindíssima, tornando as cenas interessantes de se observar em primeiro lugar pelo movimento e estética.
Conforme se desenvolve, a IA acaba afetando a família de Natsuki, e Kenji acaba se vendo na situação de protagonizar o combate ao Love Machine (LM), criando laços mais fortes com a família e por fim se tornando de fato o namorado de Natsuki. Durante essa parte também existem diversos paralelos entre as rotinas dos personagens e o que está acontecendo dentro do OZ, com destaque para um dos membros da família que é jogador de Baseball e seu desempenho na liga casa com as situações dos personagens lutando dentro do OZ.
A avó é tida como a principal de todos os parentes de Natsuki – afinal é ela quem a mesma quer agradar – e durante o filme toda a família funciona em função dela, ela é ativa, forte, expressiva e pessoa agradável num geral, torna Hanafuda uma tradição entre os membros. Durante o primeiro ataque de LM nas redondezas, a avó utiliza um telefone de disco, daqueles antigos, para se comunicar com todos os ramos da família que estão em trabalho no momento e podem ajudar. A luta contra LM, por fim, termina de maneira apropriada onde pessoas conectadas ao OZ dão apoio a Natsuki & família num jogo de Hanafuda contra LM apostando todas as informações que ele se alimentou. Essas relações entre as chamadas de telefone da avó, o uso de Hanafuda dentro OZ ressaltam a interação entre gerações diferentes, tentando superar os choques a fim de uma complementar a outra. Ao invés de ser apenas sobre as partes negativas de acidentes tecnológicos como esse, o filme toma um posicionamento bem positivo e esperançoso. É bastante bonito.
Summer Wars é bem carregado. Às vezes parece ter temáticas demais e todas elas interessantes e duas horas parece pouco tempo. A impressão que fica, porém, não é a de disjunção e sim de complementos, seu tema principal é claro e os outros estão lá apenas para enaltecer a importância do centro do filme.
Esse é um dos filmes que me conecto com facilidade sempre que assisto talvez por causa do contato com família grande ser bem parecido com a minha e as reuniões serem identificáveis demais. Mamoru Hosoda criou Summer Wars a partir de sua experiência com uma família grande e cheia de desconhecidos, por causa de seu casamento. Wolf Children é uma homenagem a sua mãe e The Boy and The Beast conta sua experiência como pai. Seu filme mais recente, Mirai, também parte de suas histórias pessoais, dessa vez a de ter dois filhos e a relação entre irmãos. É sempre pessoal, é sempre o filme de sua vida.