Indo, indo
Existe uma tradição na apreciação de jogos que transcreve uma porção de experiências em termos de sensações táteis, de forma que quem fala parece um ergônomo ou um mecânico. Aqueles “controles fluidos”, “movimentos responsivos” e uns termos mais intensos, outros (um pouco) menos bobos. Todos me remetem às discussões “de oficina” de uns tios: eles sempre falavam das coisas como se estivessem falando de carros e tratores – máquinas. Um tio uma vez disse que é muito simples fazer um avião decolar: “você vai dando torque e sentindo aqui a alavanca na mão”, disse ele, enquanto repetia o movimento clássico Daquele Negócio. É engraçado, mas assustador, que quase tudo nesses papos era tratado dessa forma, você “sentia” como estava o amortecedor de tal coisa, afofava tal pneu de tal caminhão. Nem a churrasqueira escapava dessa modulação de interação (“tá estalando, tem que trocar a chapa de baixo”).
Existe um falso reconhecimento dessa interação maquinal quando se pensam em videogames. Pode ser que alguém tenha muito a dizer sobre esse assunto. As diferenças entre interações e feedback em meios analógicos e digitais, ferramentas que traduzam essa tatilidade que vem de fariscar videogames, blah, blah blah. Eu não ligo muito pra isso agora.
Agora eu ligo pra discrepância sensorial que máquinas em videogames invariavelmente causam (ou deveriam causar) por conta dessa tradição.
O que há de diferente e especial em carros rápidos não é exatamente o fato de serem rápidos. Antes disso é o motivo pelo qual são rápidos, aquela engrenagenzinhas, motor, não sei o quê, pá, coisas mecânicas. Você não precisa entender muito, você pisa no acelerador e alguma coisa ali ruge. Veja, você não pisa no acelerador e o carro corre: você pisa no acelerador, algo move outro algo que provavelmente faz outra coisa girar e de alguma forma energia se espalha, e aí o carro corre. E tudo isso é sensível, no assento, no volante, um cheiro é exalado, algo emana. Você, você, VOCÊ faz alguma coisa acontecer e aí o carro corre.
Mas o importante é que evidentemente (e, sinceramente, magicamente) esse passo intermediário está junto de você. Os passos intermediários não são sentidos nos videogames. Não sei exatamente como, mas esse aspecto é muito interessante.
Talvez a causa final disso seja a “demaquinização” da experiência do controle de videogames. Jogos de corridas com carros não são o mesmo que dirigir carros, mesmo que seja isso que tentem simular. Mover os dedos de uma mão com os dedos de outra mão é uma ação mais “de oficina” que dirigir um carro em um videogame. Em um videogame, de verdade, você está correndo com o carro. Creio.
As melhores sensações de movimentação em videogames são as mais mecanicamente (nesse sentido materialístico, “de oficina”, não no sentido físico) alienantes.
Eu já tive alguns skates de dedo, era muito ruim “brincar sério” com aquilo. Tentar fazer manobra como se seus dedos fossem pés era péssimo. Eu brincava com skates de dedo singelamente deslizando por aí, pulando de móvel em móvel, de parede em móvel, de móvel em parede. Os “tics” do skate saindo de uma superfície e os “plecs” do skate chegando a outra eram ignorados, a vibração e o barulhinho dos giros das rodas também. Eu voava com aquele negócio, era verdadeiramente fluido, suave. Realizador.
Jogos em primeira pessoa com movimento interessante me fazem sentir da mesma forma. Personagens com movimentação CPMA em Quake Champions, essas firulas dos Call Of Duties novos, mapas de “surf” em qualquer Counter Strike, poder ir rápido o suficiente a ponto de perder o controle, zigar e zagar, utilizar movimentos do mouse para conservar velocidade. Todas essas coisas antinaturais são como voar por aí.
Nesses jogos não há aquele passo entre pisar no acelerador e o carro correr, mas você não quer correr, você quer voar.