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Tibia e Minha Tíbia

Felizmente, existe um contrassenso no que todo mundo vai te dizer sobre bons MMORPGs. O que os gurus vão te dizer sobre o que um jogo desses precisa pra ser bom tem um segredinho escondido, feito pra ser descoberto não por aqueles que seguem e mesmo superam os gurus, mas por quem se desgarra do rebanho e descobre, sem querer, um jogo ruim — como Tibia.

Esse segredo consiste no seguinte: quanto mais um jogo é bom em estimular exploração, menos exploração existe de fato no jogo. Por exploração eu não me refiro, naturalmente, ao ato de explorar, ipsis litteris. Eu me refiro a uma certa sensação de que o mundo é maior do que você, de que o perigo mora ao lado, de que você está à mercê do que está fora dos quatro cantos da tela. A sensação, afinal, de que o desconhecido já está aqui. É uma sensação análoga ao terror, é parente do desespero, mas vem junto com aquele sentimento de quando você está, afinal de contas, se aventurando.

Tem duas maneiras de te apresentar ao universo: “olha como o universo é grande” e “olha como você é pequeno”.

Se você vem e me diz — veja que enorme, esse mundo! Olha quanta variedade de comida pra você comer, quanto bicho pra você matar, quanto dinheiro pra acumular! Eu vou me sentir parte. Vou pensar do todo pra parte, vou alinhar o que dá pra fazer com o que eu quero. Vou entrar no mar e me esbaldar na água salgada.

Se, no entanto, você disser — olha pra você! Tão frágil, tão pequeno. Olha quanta fome você passa, de quantos jeitos você pode morrer, quão caras são as coisas que você quer! Eu vou me sentir engolido, vou encaixar o que eu quero no que dá pra fazer. Eu vou ter medo da água, vou colocar o pé antes pra saber se ela não é venenosa. Ou, no mínimo, gelada.

A aventura de uma trilha em uma enorme reserva controlada é muito diferente daquela em um pedaço esquecido de mato. Quando você entra em um bueiro de rato pela primeira vez, você não sabe quão grande ele pode ser. Dois ratos te matam com cem mordidas, mas três ratos te matam com vinte. O jogo não sabe que você desceu em um buraco sem corda — e o jogo não quer saber. Ninguém pediu pra você estar ali. Você foi porque estava com fome, porque é pobre, porque precisa.

Não sei se existe algum jogo hoje em dia que te avise que existe algum perigo em volta, mas não te diga qual é o perigo ou por que isso está acontecendo com você nesse momento. Se o fazem fazem pra causar medo. Outros jogos não avisam — ou avisam e inscrevem o perigo em um espaço, um tempo ou uma circunstância que te faça merecer aquele perigo. Pra purificar a relação do jogador com o desafio ou com o medo elimina-se o outro. Em Tibia, existe um encadeamento. O medo é um subproduto do perigo e o perigo, uma função do mundo sobre o personagem. O personagem é fraco, bobo e não sabe o que pode lhe acontecer.

Não é que o jogo queira fazer isso, e essa mistura de desafio com medo é, na verdade, um ruído. Porque, apesar de tudo. você não tem culpa se, 100 metros pro lado de onde você tá acostumado a ir, existe um monstro muito mais forte do que você é capaz de matar. Esse tipo de ruído desincentiva a exploração (o ato de fazer várias coisas, comer várias comidas e matar vários bichos). Mas em uma era de jogos purificados, destilados — na era da exploração, enfim — nós não temos aventuras: temos excursões.

Desafio é o que fica na sua parede, um testemunho da sua capacidade de superação. Aventura é história pra contar — mesmo que você saia arranhado e só de meia.

Não há como culpar a tentativa de mostrar o infinito de um mundo de fora para dentro. Tibia mesmo se transformou ao longo dos anos e é hoje um jogo muito melhor. Entendeu o que faz World of Warcraft bom, entendeu o que constitui o serviço de um jogo. Mas, por mim, eu vou ficar esperando jogos que me tragam novamente o infinito para fora. Afinal de contas, o infinito para fora somos nós que fazemos.

Palas
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