O Baralho, A Bola, a Casca de Banana, o Dado e a Máscara
Aqui vai um fato curioso: quase não existem deuses dos jogos. Existem jogos em todas as culturas antigas e em todas as mitologias, e mesmo existem divindades e mitos que se valem de métodos lúdicos e/ou traiçoeiros — são pregadores de peça, zombeteiros, dissimulados ou simplesmente brincalhões. Loki, o Saci, a húli jīng, kimuho ou kitsune, leprechauns e Exú são exemplos de espíritos ou divindades que incorporam jogos e brincadeiras em suas personalidades e prerrogativas, mas não são patronos desses jogos ou brincadeiras.
Então vamos criar um deus dos jogos pra nós.
Embora esse seja um exercício meio besta, uma brincadeira em si, existe uma utilidade muito forte em deuses como representações da coletividade: eles nos dizem muito sobre o lugar de cada atividade dentro de uma sociedade, nos falam muito sobre o consciente e o inconsciente coletivo de uma época e um lugar. Coincidentemente, estamos em uma época e lugar em que o jogo e a brincadeira são atividades reconhecidas e delimitadas do ser humano e, como Johan Huizinga já nos disse em Homo Ludens, essa noção de “jogo” tanto como objeto cultural palpável quanto como função pervasiva da atividade humana é muito moderna.
Tanto assim que temos um milhão de palavras para designar essas funções e objetos, com etimologias diferentes e aludindo a questões completamente diferentes. Por exemplo — no português, “jogo” vem da palavra latina jocus, que significa zombaria, gracejo, divertimento. Também é a origem da palavra “jocoso”, que tem mais a ver com humor. Enquanto isso, “brincar” vem de vincire, também do latim, que quer dizer prender, seduzir, encantar. Esse verbo também está relacionado com a palavra brinco (o de orelha, mesmo) e com vinculum, que originou a palavra “vínculo”, mas originalmente significa “algema” ou “laço”.
E nenhuma dessas palavras era usada pelos romanos para se referir a jogos e brincadeiras. Eles tinham um termo que designava atividades divertidas de modo geral, o que incluía, aliás, a escola: ludus. Nós usamos derivações dessa palavra hoje em dia, inclusive, lógico, no Ludo. Mas algumas são curiosamente não relacionadas ao que chamaríamos de “atividades divertidas”: “ilusão”, por exemplo, vem de illusio, que, por sua vez, vem de illudo e illudo significa “fazer graça (de algo)”; “aludir” vem de alludo, que também significa “fazer graça”, embora já mais no sentido de “fazer referência indireta e vaga, por substituição”.
Essas coisas eu estou dizendo um pouco pra ilustrar a extensão das atividades e objetos que envolvem brincar, fazer graça de algo, que envolvem alguma espécie de comportamento lúdico. E, embora estejamos em uma era em que esses comportamentos são vistos objetivamente, de fora, essa também é uma época em que estamos restringindo o escopo dessas atividades naqueles que são os objetos culturais que encapsulam esses comportamentos lúdicos, pelo menos na corrente mais relevante deles. Ou, talvez, estamos restringindo justamente porque aprendemos a objetivar esses comportamentos. Então, estamos tentando controlar suas manifestações através de princípios e teorias.
Por isso, o deus dos jogos e brincadeiras se torna importante: um mito é sempre útil para lembrar que a brincadeira não pertence a uma pessoa ou a um conjunto de pessoas sábias, mas sim a todos, é inato do ser humano e não há nada que possamos fazer pra controlar. Precisamos, em vez disso, observar essa materialização de um espírito comum a todos, para nos lembrarmos do que é realmente importante.
Então vamos começar pela sua aparência. Esse deus deve ser uma criança, é claro. Aliás, vamos fazer aqui uma deusa, primeiro porque isso nos permite chamar a deusa de Ludimilla, segundo que isso nem importa tanto assim já que deuses que brincam tradicionalmente são capazes de mudar sua aparência ou gênero. São deuses que estão nas bordas entre as coisas, sendo capazes de atravessá-las; são deuses transgressores, indicando que aqueles que brincam são mais capazes de infringir regras, de não levá-las a sério.
Vamos com Ludimilla, a Deusa dos Jogos e das Brincadeiras.
Ah, vamos fazer ela ser capaz de aparecer pras pessoas como uma menina, como um menino ou como uma raposa, tanto pra ela já fazer merchan aqui do dislu.do quanto pra incorporar um dos animais associados ao gracejo e à artimanha. A raposa é tradicionalmente e em várias culturas um animal filho da puta, esguio, capaz de se esquivar e de enganar caçadores.
Ludimilla carrega consigo cinco objetos sagrados, com os quais ela descobriu os jogos. Esses são o baralho, a bola, a casca de banana, o dado e a máscara. Vamos à história de como ela descobriu cada um deles, começando pela Máscara.
O primeiro objeto que Ludimilla descobriu foi a Máscara porque um dia, em sua forma de raposa, foi perseguida por um caçador. Muito rápida, ela conseguiu desviar de todas as flechas e, muito esperta, conseguiu despistar o caçador. No dia seguinte, o caçador tentou pegá-la de novo, sem sucesso. Esse processo se sucedeu cinquenta vezes, mas, lá pela décima, Ludimilla já estava se transformando em raposa de propósito e o caçador já estava sem esperança de conseguir matá-la, mas tentava mesmo assim. Foi assim que se criou a ideia de fazer algo por esporte, não importando o sucesso ou o fracasso. A brincadeira surgiu quando algo foi feito como um fim em si mesmo. Ludimilla descobriu que, ao se disfarçar, ela era capaz de fazer qualquer situação virar um fim em si mesmo, como a caça feita de brincadeira a partir de uma atividade dedicada à subsistência.
Assim, ela criou a Máscara, que servia para indicar que, enquanto fosse usada, regras especiais e que só serviam a elas mesmas estavam em vigor. A máscara separa o mundo real do mundo criado exclusivamente para a brincadeira. A máscara te permite simular outra pessoa, outros comportamentos, outras atividades, delimitadas pela própria máscara. É uma possessão autoinduzida, ou seja, é uma transformação para aqueles que não conseguem se transfigurar como Ludimilla faz.
Assim, o faz-de-conta e a imitação viraram os primeiros comportamentos lúdicos.
Outro dia aí, Ludimilla escorregou em uma casca de banana. Ela estava, sei lá, saltitando por aí. Nossa deusa olhou pra um lado, olhou pro outro, viu a casca de banana e falou “ah, pronto”. Inconformada e com vergonha, tentou refazer exatamente os três últimos passos para não cair, mas caiu de novo, só que dessa vez menos estropiada no chão. Refez os passos e, dessa vez, conseguiu fazer uma pirueta (mas caiu mesmo assim).
Ela percebeu, então, que cair era inevitável — mas, se era inevitável, talvez ela devesse conseguir fazer alguma coisa antes de cair para manter sua dignidade. Assim, ela ponderou que lutar contra a força irresistível que era a casca de banana para fazer o máximo possível antes de cair era, em si, divertido, e resolveu fazer disso a segunda brincadeira: ela colocou a casca de banana no pé de outras pessoas pra fazê-las cair, tentou se fazer cair de costas, de frente.
Tentou, enfim, dar uma intenção específica ao que ela considerava uma força inexpugnável, “já que já vai acontecer mesmo”. Como a derrota era inevitável, ela inventou o comportamento lúdico de perseguir a vitória ao encontrar o sucesso em executar uma intenção específica, ajudando em outros ou retardando em si um efeito que acontece para todos.
Pouco tempo depois, Ludimilla encontrou uma bola. Na verdade, ela tropeçou em uma bola (Ludimilla é meio atrapalhada). E a bola rebateu em um muro próximo e acertou a cara dela, o que a fez sentir muita vergonha, mas também a fez pensar que, se ela conseguiu acertar logo sua própria cara, ela seria capaz de chutar a bola e atingir outras coisas, dessa vez de propósito.
Ela viu que dar intenção a um objeto subordinado à sua força era tão divertido quanto brincar dentro do escopo de uma força irresistível, então ela aprendeu que coordenar ação e efeito, em que o efeito fosse claramente causado pela ação, mas sem a ideia precisa de como, era uma brincadeira possível. Então ela aprendeu a chutar bola na parede com força suficiente para conseguir ainda pegar quando a bola voltasse; ela aprendeu a chutar a bola pra cima de modo que conseguisse chutar a bola pra cima de novo.
O terceiro comportamento lúdico que Ludimilla inventou foi a de executar alguma coisa pelo prazer de executar, uma observação da própria habilidade em aplicar intenção a alguma coisa que só altera seu estado por sua causa.
Logo no dia seguinte, Ludmilla tropeçou em um dado. Na verdade, ela achou uma pedra de seis lados, cada lado bicado por um número diferente de pássaros. A pedra caiu com a face de três bicadas voltada pra cima e Ludimilla, muito brava por continuar tropeçando nas coisas, refez seus passos para tentar não tropeçar. Tropeçou de novo, mas observou que, dessa vez, a face com cinco bicadas estava voltada para cima. E ela achou isso muito estranho porque, ao contrário do caso da casca de banana, em que o resultado nunca mudava, mas ela podia mudar sua ação até esse resultado inevitavelmente acontecer, a mesma ação gerava resultados diferentes. E, ao contrário da bola, a pedra não parecia depender de sua intenção para gerar esses resultados.
Então Ludimilla refez seus passos quarenta vezes, tentando adivinhar qual lado sairia voltado pra cima a cada vez. Ela percebeu que acertava pouquíssimas vezes, mas ficava muito feliz quando acertava, sentindo que sua intuição e o mecanismo misterioso que gerava esses resultados tinham se alinhado. E ela percebeu que isso, em si, era divertido.
O quarto comportamento lúdico que Ludimilla inventou foi, portanto, o de observar uma mesma ação gerar resultados independentes entre si e sem nenhuma causa discernível. Mais ainda, tentar alinhar seu pensamento com esses resultados independentes.
Essa era a mais viciante das brincadeiras, porque a diversão era sempre a mesma — ao contrário da Bola e da Casca de Banana, não ficava cada vez mais difícil aplicar uma intenção mais precisa. Tinha seis resultados possíveis, então não tinha como não chutar um deles. A brincadeira tinha resultados discretos, não uma infinitude de possibilidades, a maioria deles indistinguíveis entre si. Jogar o dado era o mesmo jogo toda vez e isso, em si, também era divertido.
De modo que tanto jogou o dado e de tantos jeitos diferentes que a pedra se quebrou em partes idênticas, a não ser pelas bicadas em suas faces. Ludimilla ficou desesperada, foi pegar os cacos e, ao perceber que não ia conseguir colar o dado de volta, decidiu que queria, pelo menos, levar pra casa. Ao coletar todos, percebeu que precisava organizá-los de alguma forma para conseguir levar e ficou em dúvida de como organizar. Do maior para o menor número de bicadas? Primeiros as bicadas pares, depois as ímpares? E se tivesse regras de qual caco levar na mão e qual caco colocar em uma sacola? E ficou tentando achar a melhor organização para os cacos, com tanto afinco que descobriu que essa atividade, em si, era divertida.
Ludimilla inventou o baralho a partir de um dado quebrado. O quinto comportamento lúdico que ela inventou foi o de organizar sistemas em desarranjo.
Com todos esses objetos em casa, ela começou a combiná-los para inventar brincadeiras e jogos novos. Todos os jogos, até hoje e pra todo sempre, são e vão ser uma mistura desses objetos e evocam uma combinação desses comportamentos lúdicos.
Mas estamos muito focados no baralho.
Todas as regras que usamos hoje pra identificar, analisar e fazer jogos são derivadas de como desarranjar um sistema de modo suficientemente complexo e suficientemente simples para que o jogador consiga colocá-lo em equilíbrio.
Videogames são, em geral, elementos dispostos para o jogador resolver e chegar em um estado de equilíbrio, seja ele a vitória ou a derrota. Isso não é de hoje, lógico: mesmo xadrez é um sistema em desarranjo, por mais bonito que seja o arranjo das peças no começo e por mais caótico que pareça o arranjo das peças no final: as regras ditam o processo segundo o qual os jogadores têm que jogar para atingirem um equilíbrio. A única maneira de manter o sistema em desarranjo é parar de jogar.
A questão é que existe um mundo de brincadeiras e comportamentos lúdicos. Nenhum deles pode ser confundido com uma definição precisa de jogo em uma era em que nos ocupamos cada vez mais exclusivamente de jogos para brincar. Claro, brincar é um elemento pervasivo da cultura e do comportamento e vamos brincar com o que nos aparecer na frente pra sempre. Mas ativamente restringir um elemento da cultura, uma indústria e uma mídia a um conjunto específico de princípios e origens da diversão é uma ofensa à Ludimilla tanto quanto às crianças que brincam de pega-pega na rua.
Lógico, Tetris e futebol têm tanto elementos de casca de banana quanto de bola. Afinal, o jogo de futebol vai acabar pela força irresistível dos noventa minutos e Tetris vai acabar pela força irresistível dos blocos caindo. Mas é importante sempre nos lembrarmos que se disfarçar é, por si só, divertido. Rolar no barranco é, por si só, divertido. Jogar uma bola de papel no lixo é, por si só, divertido. Fechar o olho, rodar e jogar uma bola de papel pra ver onde ela acerta é, por si só, divertido. Não podemos nos pautar apenas por como tornar resolver sistemas divertido e, pior, tratar brincadeiras que não se tratam de resolver sistemas como não-jogos, coisas que não merecem fazer parte dessa cultura, dessa indústria e dessa mídia.
Então, sempre que você pensar a respeito de um jogo, “isso não é um jogo!” porque a diversão se origina de se colocar na pele de outra pessoa, de rolar um barranco, de jogar uma bola de papel no lixo ou de jogar um giz no ventilador e ver em quem acerta, saiba que Ludimilla, a deusa dos jogos e brincadeiras, está olhando muito feio pra você.