Monogatari Series: Disludo Fox, Part II
Este texto tem spoilers de três séries de Monogatari — Bakemonogatari, Nisemonogatari e Owarimonogatari; então, se você é desses que não curte spoiler, é melhor não ler
O primeiro arco de Bakemonogatari, Hitagi Crab, é sobre uma menina que não tem peso. Essa menina, Senjougahara Hitagi, devia pesar 50kg como uma menina de IMC na média para sua altura e idade, mas pesa apenas 5kg. Isso acontece porque, alguns anos atrás, sua mãe se envolveu em uma seita que extorquiu sua família e chegou a submeter a menina a um ritual que envolve estupro (do qual ela escapa). Seus pais então se divorciaram e Hitagi ficou na guarda de um pai afundado em dívidas com homens que lhe prometeram tirar a família da seita, só pra depois vazarem de cócoras com o dinheiro.
No meio dessa história, a personagem viu um caranguejo gigante no meio da rua que prometeu aliviar seu peso — roubou-lhe os sentimentos negativos sobre a mãe, a situação extrema pela que passou e sua decepção com a humanidade em geral e, junto com isso, 90% de seu peso literal.
(Até aí, tudo bem.)
Quando nos é revelado por que Senjougahara só tem 10% do seu peso normal, o especialista em eventos sobrenaturais Oshino Meme (não posso fazer nada, esse é o nome dele mesmo) explica que o caranguejo é, na verdade, um deus — parte do folclore de Kyūshū, no sul do Japão, e na verdade seu nome, função e aparência não passam de trocadilhos: Omoshi Kani, ou “caranguejo do peso”, tem seu nome derivado de omoishi-gami, ou “deus do sentimento de apego”. É tudo uma brincadeira com 思い (omoi, “sentimento”), 重い (omoi, “pesado”), 蟹 (kani, caranguejo) e 神 (kami, deus).
Para se livrar do caranguejo e recuperar seu peso, Hitagi tem de enfrentar a entidade, mas, como ela é originalmente um deus que lhe fez o favor de carregar o peso literal e figurado de seus sentimentos negativos por anos, esse enfrentamento acaba não passando de se prostrar diante do bicho, agradecer a ele e pedir desculpas. Tudo que eu falei até agora mostra como, em vários níveis, o poder da fala e da palavra é o que guia a história e o universo em Monogatari. Já falamos um pouco de como a palavra materializa o mundo no primeiro desses textos sobre o anime e vamos falar muito mais sobre a comunicação como fundação da série. Mas, por enquanto, vamos deixar isso tudo de lado e vamos nos atentar a duas coisas sobre esse primeiro arco:
- No fim das contas, embora todo o arco seja sobre eventos sobrenaturais, ele é uma grande sessão de terapia em que Senjougahara é forçada a parar de se distanciar psicologicamente de seus sentimentos negativos sobre o passado e escorá-los em uma entidade que ela reconhece como “outro”.
- Durante e depois desse arco, a personagem Senjougahara fica tão intimamente ligada com a figura do caranguejo que, quando se fala dela sem ela estar presente na cena, o anime frequentemente alude a ela mostrando um caranguejo em vez de mostrá-la
Então, primeiro, sobre as histórias em Monogatari Series: na premissa, todas as histórias são histórias de terror (como o nome Bakemonogatari, “histórias de monstro/fantasma”, sugere). Mayoi Snail, o arco logo depois de Hitagi Crab, é sobre um fantasma que você só vê quando ativamente não quer voltar pra casa e que te faz se perder — possivelmente pra sempre. Suruga Monkey é sobre uma moça cujo braço de macaco a possui de noite e realiza seus desejos secretos de maneiras macabras. Nadeko Snake é sobre uma menina afetada por uma maldição que deixa marcas de constrição de cobra em seu corpo e, se isso não parar, ela vai morrer sufocada. Tsubasa Cat é sobre um gato misterioso que ataca pessoas de noite e as suga de sua energia vital.
Mas, quando você assiste tudo, você termina com uma sensação meio esquisita de que, na verdade, todos esses eventos acabaram sendo desculpas para a história falar de problemas muito mais mundanos e adolescentes— Mayoi Snail é sobre Araragi se sentir um péssimo irmão, apesar de querer muito bem às irmãs; Suruga Monkey é sobre tentar “contornar” os próprios sentimentos em vez de lidar com eles de frente; Nadeko Snake é sobre guardá-los indefinidamente até sufocar; e Tsubasa Cat é sobre, basicamente, começar a namorar e aí descobrir que sua melhor amiga gosta de você.
Quando você percebe isso, você se dá por muito satisfeito e pensa “decifrei Monogatari. É isso. Todo esse rodeio pra falar de talarico e sacanagem”. É tentador parar por aí.
Afinal, aprendemos nas aulas de roteiro ou escrita criativa, nas análises de Youtube e nos guias de como escrever bem que personagens são histórias e vice-versa. O que importa é o que eles fazem, mais do que como eles aparentam ou do que são suas representações. Pode pegar aí o Story do McKee, é isso que ele vai te falar: personagem é ação e ação é história. Nada caracteriza um personagem senão como ele age e se transforma dentro da história; e a história nada mais é do que a justificativa da existência do personagem. Pensando assim, o sobrenatural em Monogatari se torna puramente temático, metáforas para a situação real dos personagens.
Mas, como já falamos antes, Monogatari não escoa segundo uma estrutura dramática comum. Personagens de Monogatari não são história, são pessoas. E pessoas, em Monogatari, são fractais.
Outra de minhas cenas favoritas está no arco Karen Bee. Nela você tem Karen, irmã mais-nova-mais-velha do protagonista, confrontando Kaiki por seus esquemas enganosos, vendendo superstições pra menores de idade. Infelizmente antes tinha outro vídeo no Youtube com legenda, mas esse não tem. Não importa muito — eu quero que você preste atenção em tudo que não são os personagens nessa cena. Especificamente nas paredes.
Você pode observar como tudo que os personagens falam é materializado nas paredes e no chão. Como falamos no primeiro texto, pode ser e pode não ser que as paredes sejam “realmente assim” dentro do mundo, mas isso absolutamente não importa. Para todos os efeitos, o universo é como nos aparece não é uma interpretação por parte de algum dos personagens, não estamos na cabeça de nenhum deles.
Ao contrário: o universo é a cabeça de cada um deles quando eles estão com a palavra. Todo código é restrito aos planos. Perceba como, se Karen não está falando e muito brava e com a imagem de um mar bravo replicada atrás de si, o barulho do mar bravo não existe. Todo código só existe enquanto ele é validado pelo personagem. Assim, absolutamente tudo que acontece nessa cena e em outras dentro do mesmo arco — a personalidade de Karen, a cor de suas roupas, o que lhe acontece (ela é hipnotizada para achar que levou a picada de uma abelha) e tudo que é replicado no universo segundo aquilo que ela fala serve apenas para nos mostrar não como Karen age, mas o que ela é frente ao assunto da crônica audiovisual da vez. Os personagens são marcados por suas posições dentro dos temas tratados, o que não muda de acordo com suas ações.
Tomando o caminho contrário, toda representação que você pegar dela é uma fração que representa o inteiro do personagem de Karen. Assim, o sobrenatural não é metáfora, é metonímia. Porque Karen é a abelha, Hanekawa é o gato e Nadeko é a cobra. A colusão de denotação e conotação em Monogatari faz com que toda história sobre o sobrenatural seja uma história também sobre coisas muito simples e cotidianas, de modo que elas até pareçam metáforas. Mas, como o status dos problemas mais mundanos de Araragi & Associados (a dificuldade de Hanekawa em aceitar suas próprias falhas, a dificuldade de Senjougahara de deixar o passado ir embora, a dificuldade de Nadeko de sair de sua zona de conforto) se tornam problemas viscerais, visíveis, materializados e não só expostos como replicados no mundo, eles se tornam marcas absolutas de suas essências.
Em Monogatari, portanto, o personagem é tudo e só não está acima do universo porque os dois se misturam. É por isso, aliás, que não existem pessoas em nenhum episódio do anime. Experimente assistir o anime procurando figurantes. Eles simplesmente não existem — ou ainda, você nunca vai ver deles uma representação que ultrapasse sua função dentro do tema, e essa função é sempre quase nula (por exemplo, existe uma passagem em Owarimonogatari em que, pela primeira vez, colegas de sala de Araragi aparecem em cena. Mas eles não são gente, são empilhados de kanji formando seus nomes). Não existem pessoas em Monogatari porque, na tela, não existe nada que não seja personagem, não existe personagem que não seja pessoa e não existe pessoa que não seja um fractal.
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