Deixe-a, Shepard, deixe-a
É verdade que o coração do homem é uma máquina, mas dificilmente a máquina vai ter um coração. O bolo de sentimentos, conflitos e resoluções que nos definem como ser pensante e responsável pelo cosmos podem ser replicados, calculados, simplificados, mas nunca verdadeira compreendidos por quem por eles não é afligido às três da manhã, quase caindo no sono – soterrado por uma onda súbita e extrema, como uma parede, feita da certeza e incerteza das coisas. Como, então, se apaixonar por uma nave? Não seu cérebro de controle, sua IA e sistemas de navegação, mas suas caixas e cadeiras, o metal frio e fino que é a única coisa entre você e o vácuo. Como amar, após o trauma do espaço, seu quarto de janelas gigantes, que te obrigam a dormir encarando as estrelas que foram sua morte?
Nos apaixonamos pela nave porque nos apaixonamos por quem a ama.
Mass Effect 2 é sobre amor, de forma real ou metafísica. É um sistema arraigado de crescimento exponencial em cada tiro trocado, cada palavra escondida. O universo se cria e se destrói por esse amor, e seus personagens seguem de acordo. Então Mass Effect 2 nos fala do início do amor, por aqueles que nunca puderam senti-lo e aqui, voando no espaço, são capazes de encontrar propósito e alento entre seus iguais diferentes; e sobre sua ausência, quando tudo que nos sobra são as lembranças das coisas boas, reviver cada uma segundo após segundo sem muitas vezes saber como lidar ou como compensar pelos erros passados.
Existe sacrifício, em se doar a uma ideia e contrariar seus instintos na fé do futuro; existe uma força de amizade que brota do infortúnio e da empatia, do aprendizado contínuo entre o que sou e o que é o outro e como essas diferenças fazem parte do mesmo todo.
Existe uma ausência em ser Shepard que não existe no primeiro jogo da trilogia. A força que define a personagem, a sombra da fama e dos feitos heroicos do passado, ao mesmo tempo se exacerbam e se apagam. Como na morte. E os fatos que preencherão esses vazios não estão mais na própria personagem nem no campo de batalha, mas sim nos outros. Então nos aproximamos de Miranda, Grunt, Tali, Garrus, Jacob, Thane, Jack, Legion, Mordin, Samara e aprendemos sobre suas famílias, suas culturas, as músicas que cantavam na infância e as coisas que doem, as coisas que ficaram para trás. E é buscando esses pedaços dos outros, é os deixando um pouquinho mais completos, que Shepard sim, consegue fechar o capítulo de sua morte, desses dois anos que para ela parecem dois dias, essa irrealidade da reconstrução celular mecânica que a fazer quase tão surreal quanto o universo em que se localiza. A ausência parte e o buraco se fecha, não pela dependência, mas pelo amor.
A ilegalidade da personagem a faz deslocada, como um mau necessário para a galáxia. Mas Shepard é mais que uma figura de referência, de luta: ela é a cola. Quando colocada entre as espécies, os faz nem sempre amigáveis uns com os outros, mas ao menos colaborativos; quando colocada entre políticos, quebra seu caminho até a solução, nem que isso signifique fazer inimigos pelo caminho. Existe uma ausência dentro dos seus companheiros de esquadrão, uma dor que esses dois anos plantou no coração e na alma da galáxia como um todo, que não existe no primeiro jogo da trilogia. E Shepard é a cola não só desse mundo político, dessa parte sobre salvar a galáxia e tudo o mais, mas também amarra os pedaços daqueles que a acompanham no lugar de novo, e os enche de esperança, e os infecta com lealdade, e os leva para a missão suicida que pode significar o tudo ou nada de toda espécie evoluída na Via Láctea. Mass Effect 2, assim, fala sobre amor ao todo, sobre lealdade cega ao próximo, sobre uma coragem inexistente mas que persiste porque se sabe que é a única alternativa. E passamos a amar o todo e suas partes, e passamos a sacrificar o que nem temos na espera de algo maior. Passamos a amar a máquina.
Porque, além e antes de tudo isso, Mass Effect 2 na verdade fala sobre a Normandy. No primeiro jogo ela é um corredor, uma linha reta de A para B que você até tem certa afeição, mas é mais como um grande ônibus espacial do que um carro confidente. Por mais que possamos visitar esse ou aquele lugar e conversar com todos os companheiros de viagem (quando eles querem, pelo menos), não existe a real intimidade, nem se entende a real necessidade de uma nave tão grande. Mas a Normandy explode e você perde não só sua vida, mas tudo que define sua identidade. O que sobra da Shepard e, como consequência, do jogador, é um fantasma de si mesmo, um zumbi que não sabe mais quais partes ainda são suas e quais são clonadas do nada da ciência. Como Shepard, a nave é obliterada, então resgatada, remontada, injetada com elementos que em um contexto ideal jamais lhe seriam dados, mas que no mercado negro da Cerberus não são mais do que segunda-feira. Reconstruída, emprestada para terceiros com um propósito fixo, então roubada, levada por piratas de bons ideais para o fim do mundo.
Quando tocamos as reentrâncias em suas paredes não vemos mais a nave, mas sim o que ela foi e o que hoje é, e quando vamos para qualquer um dos seus cinco andares não os chamamos “Engineering” ou “Crew’s Quarters”, mas “aqui é onde converso com o Garrus” e “aqui é onde escuto o Mordin falar sozinho”. Como uma casa; como uma vida. Então quando digo que Mass Effect 2 é sobre amor, é sobre amar a máquina, digo que esse sentimento vai além de escolher qual personagem é melhor pra dar uns pegas no final, por mais que o grande comercial do jogo seja “olha todos esses aliens que dá pra dar beijo”. Dê beijo em todos, mas se permita ir além deles, além dos sim e não e as barras de alinhamento.
Se apaixone pela máquina e pela janela que dá para o vazio, se apaixonando por tudo que vem antes. Se apaixone por Garrus Vakarian também, recomendo muito. Tire de Mass Effect 2 não os tirinhos e o meio da franquia, mas a lembrança que entremeia tudo depois de passar a última caixa de diálogo.