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Saquinho Surpresa e Bexigão

A conflagração (eu adoro essa palavra, “conflagração”. Por mim, o mundo pegava fogo toda semana só pra eu poder usar essa palavra mais vezes) que a cultura dos videogames está vivendo nas últimas semanas por causa de microtransações em geral e lootboxes em particular teve uma explosão quando, finalmente, tivemos notícias do que Star Wars Battlefront II reservava pra nós: 4.528 horas de jogo pra destravar todo o conteúdo e 40 horas (em média) pra destravar cada herói, praticamente tornando lootboxes o instrumento principal de progressão do jogo. Isto é, pagar pela chance de obter mais itens, heróis e conteúdo em geral.
Esse tipo de situação — que não é nova, mas adquiriu proporções de caricatura com o novo jogo da EA — estimulou vários governos, incluindo o do Reino Unido, o da França, o da Bélgica e o da Holanda, a investigar ou propor a investigação da relação entre lootboxes e jogos de azar.

Parece que estamos no caminho de regulamentar o uso de loot boxes por jogos através do enquadramento delas como jogos de azar, ainda que a ESRB tenha dito que acha que não. Podemos desconfiar um pouco da ESRB aqui, uma agência de autorregulação da indústria dos videogames regida pelas publishers (como a EA, publisher de Star Wars Battlefront II) e, portanto, inimigos do proletariado. Mas eu quero defender uma opinião impopular com esse texto:

Lootboxes não são aposta.

Pronto, eu disse. Pode ir embora do site agora. O último que sair apaga a luz, por favor. Mas, se por acaso você resolver ler até o final, eu juro que te dou uma chance de ganhar uma incrível raposa dentro de um saquinho misterioso. Enquanto isso, vamos discutir lootboxes em três níveis de análise —

  • Sistêmico/Técnico
  • Pessoal/Psicológico
  • Cultural/Econômico

Nesse primeiro nível de análise, vamos comparar a definição sistêmica de lootbox com a definição sistêmica de jogos de azar e demonstrar onde existem semelhanças e onde existem diferenças. Vamos ver, então: lootboxes são itens que você compra dentro de um jogo (com dinheiro de verdade ou não) que te dão itens aleatórios. Pode ser, como pode não ser, que o jogo evite te dar itens que você já tem e pode ser, como pode não ser, que você possa decompor os itens recebidos direta ou indiretamente em dinheiro do jogo ou materiais para construir mais lootboxes.

Muito bem. Vamos aos jogos de azar.

Jogos de azar são jogos de soma zero em que há apostas com dinheiro ou valores materiais e a sorte é o principal, senão o único fator decisivo pro resultado do jogo. Nós temos aqui, então, três requerimentos para que um jogo seja caracterizado como jogo de azar e, portanto, completamente proibido no Brasil — a sorte ser o principal fator decisivo, ter aposta com valores materiais e ter soma zero.

Em princípio, lootboxes são uma massa cinzenta e amorfa de tudo que você já tinha visto antes em jogos: todo Dragon que você mata no Tibia é uma lootbox, todo Poring que você mata no Ragnarok é uma lootbox, toda criatura com drop aleatório em qualquer jogo é uma lootbox; lootboxes, no entanto, cortam o caminho de ter que matar isso ou aquilo e substituem o processo pela injeção de dinheiro. Nesse sentido, são obviamente uma aposta, como toda batalha em RPGs também o é. Atendem, lógico, o primeiro requerimento.

Ao contrário de batalhas de RPG, porém, lootboxes não demandam algum tipo de tempo ou atividade específica para que aconteçam. Precisam só de dinheiro e atendem, portanto, o segundo requerimento para serem classificados como jogos de azar. Claro, são mecanismos naturalmente disruptivos para absolutamente qualquer jogo, porque não existe um desafio mecânico para se obter a recompensa.
A não ser em gacha, que são jogos em que você joga exclusivamente a partir de objetos ou personagens colecionáveis e que você consegue aleatoriamente, lootboxes são sempre a redução de algum mecanismo de recompensa que existe dentro do jogo para que ele funcione com dinheiro em vez de mecânicas.

Porém, lootboxes não têm soma zero.

A soma zero — isto é, o princípio de que perdas e ganhos dentro do sistema se equivalem sempre — é importante para jogos de azar porque não se cria dinheiro do nada. Então, só é possível ganhar aquilo que outra pessoa (ou a Casa) perder. O dinheiro que você ganha em uma mesa de pôquer foi perdido por todos os outros jogadores. O brinde que você ganha em uma rifa é um brinde perdido para todos os outros, mesmo que não exista lucro nenhum para quem está organizando a rifa.

O item raro que você ganha em uma lootbox não é um item raro que outra pessoa perdeu: é um item raro gerado naquela lootbox e mesmo que mil pessoas em seguida tirem o mesmo item raro, não são itens que o jogo perdeu, porque ele ainda é capaz de gerar outras infinitas cópias daquele item.

Esse último ponto é a única diferença sistêmica entre lootboxes e jogos de azar, mas eu considero ela muito, muito importante. Ela vai ter uma repercussão muito grave na análise cultural e econômica do assunto, mas vamos deixar as coisas pra hora delas. Mentira, deixa eu dar um adiantamento aqui pra você que esteve comigo até agora nesse texto: isso torna lootboxes muito piores que cassinos.

Mas o caso é que, não existindo maneira de converter oficialmente itens gerados em lootbox de volta em dinheiro, não é possível atribuir valor a nenhum. Existem potenciais infinitos de todos os itens em um jogo, o que significa que, pelo menos dentro do nível sistêmico, tirar algo que você não quer não é uma mitigação de perda, não é um prêmio de consolação. É uma troca. Para todos os efeitos, você está comprando algo.

Claro que isso só funciona sem o elemento humano envolvido.

Psicologicamente, é óbvio que você só compra uma lootbox querendo alguma coisa e qualquer outro resultado é uma perda. Você desperdiça dinheiro sempre que compra uma lootbox e ela não retorna o que você esperava, enquanto ganhar o item mais raro da coleção é uma vitória, muito como um drop raro de um monstro é uma conquista.

Existem mil artigos sobre como mecanismos de recompensa funcionam, mas não custa repetir aqui que você é, por essência e definição, viciado em recompensa. O cérebro funciona assim e os mais variados mecanismos se aproveitam disso em jogos desde sempre — não é à toa que pessoas se viciam facilmente em videogames, mesmo que não envolvam aposta alguma, e chegam a morrer de tanto jogar.

Aliás, antes da fábula do Geddel Vieira Lima de Oito Anos de Idade Hipotético que Não Consegue Parar de Roubar Cartões de Crédito para Financiar sua Sede por Skins de LoL para ilustrar o risco de crianças destruindo as próprias famílias por causa de jogos, existia a fábula do Homem que Jogou Tetris por Quarenta e Nove Dias Seguidos Até Sua Mente se Tornar Uma Com a Pontuação (infelizmente não consigo achar o link para a creepypasta, mas a ideia geral era essa). E, de fato, o aspecto do vício é o que trouxe a maior parte da controvérsia das lootboxes simplesmente porque é muito fácil comprar uma atrás da outra, então alguém deveria pelo amor de Deus pensar nas crianças.

(Saindo um pouco da linguagem chatinha desse texto, deixa eu fazer um relato pessoal aqui: eu jogo Fire Emblem Heroes, um gacha em que você compra orbes e troca essas orbes por heróis aleatoriamente. Orbes são caras pra cacete e o jogo dá várias delas através de missões, lista de presença diária e coisas que tais. Mesmo assim, ou talvez por isso mesmo, a cada mais ou menos dois meses eu me sinto tentado a gastar SETENTA REAIS pra poder puxar mais cinco heróis simplesmente porque é muito gostoso puxar heróis. Obviamente não teria a mesma graça se eu tivesse chances ilimitadas)

Nesse aspecto, não existe diferença de o que ou sob que contexto você está fazendo aposta. Você está realmente se drogando de mecanismos de recompensa ao comprar loot boxes e, ao contrário de muitas outras instâncias viciantes em outros jogos, ativar isso depende somente de dinheiro. O que não é nem um pouco diferente de jogos de azar e os potenciais problemas são os mesmos. Na verdade, ainda não aconteceu de crianças serem corrompidas pelo monstro da vontade inexpugnável de se foder, mas é natural que governos queiram evitar chegar nesse ponto. Ninguém quer ter um cassino dentro da própria casa.

Essa última frase foi obviamente uma deixa pra entrarmos no terceiro nível de análise. Seria útil aqui comparar semelhanças e diferenças entre jogos que usam lootboxes e cassinos, que são os templos da aposta. Vamos discutir o modelo de financiamento de cassinos.

Você sabia que metade da receita de cassinos vem de máquinas caça-níqueis? Isso é um indicativo de que, de maneira geral, a receita é gerada a partir de muitas pessoas perdendo um pouco de dinheiro. Naturalmente que, todos os jogos de azar tendo soma zero, eles se tornam mecanismos de concentração e é daí que surge boa parte da legislação sobre eles, como políticas de imposto. Elas só fazem sentido se muitas pessoas gastam não-tanto-assim, embora exista, é lógico, o estilo de vida 007 Casino Royale com pessoas bebendo água sanitária com casca de limão dentro e combinando conspirações globais em mesas de roleta.

Não é isso que acontece com jogos que usam microtransações. A Casa, nesse caso, gera a maior parte de sua receita com poucas pessoas gastando muito. A história é velha. A inversão, que também se aplica a lootboxes — embora seja difícil estimar o impacto desse mecanismo em particular, já que é tudo contado como “microtransações” — indica que existe algo diferente entre o jeito como jogos de azar e loot boxes operam. Eu vou propor aqui que essa diferença está no fato de lootboxes não serem um jogo de soma zero.

Vamos falar de MMORPGs.

Oferta e demanda são, de acordo com a economia ortodoxa, os fatores principais na definição do preço de um produto. Por alguma razão, isso simplesmente não funciona em MMORPGs. Se você pegasse todo o dinheiro existente em um jogo desses e distribuísse igualmente entre todos os jogadores, o preço das coisas provavelmente se manteria o mesmo. Isso acontece porque a economia de jogos é virtualmente infinita.

Uma Wand of Inferno no Tibia nunca vai custar menos de 3000gps nem mais de 15000gps. Em hipótese alguma. Não tem conversa. É um item muito útil para Sorcerers do nível 33 até o nível 37, mas ainda que todos os quadrados do jogo fossem um dia cobertos com Wands of Inferno ou que todas elas sumissem completamente do mapa de uma hora para outra, elas ainda custariam entre 3000 e 15000gps. Isso porque existem NPCs que vendem esse item por 15000 e NPCs que compram por 3000. O estoque de Wand of Inferno do que vende nunca vai acabar e o estoque de dinheiro do que compra também não, isto é, a economia do jogo é infinita.

Isso distorce muitos princípios normais da economia: existir uma oferta maior de um item, com a mesma demanda, pode fazer com que o preço aumente em vez de diminuir. Não faz sentido nenhum, mas acontece: o gasto médio, tanto em horas quanto em recursos dentro do jogo, para obter um item raro é maior quanto mais pessoas também têm condições de obter aquele item. Então, quando você finalmente conseguí-lo, o preço tem que fazer valer a pena os recursos extra gastos e, como existe potencialmente dinheiro infinito no jogo, com certeza esse ajuste pode ser acomodado.

Lootboxes são, por isso, cassinos inquebráveis.

Se você achar um jeito de trapacear uma lootbox para sempre conseguir o item que você quer, o jogo não perde nada e, se estivermos falando de um jogo em que você pode trocar itens com outros jogadores, pode acontecer de essa trapaça não ter absolutamente efeito nenhum na economia do jogo. Afinal de contas, existem virtualmente infinitos do item que você está roubando e dinheiro infinito para comercializá-lo.
Claro que isso traz estabilidade ao jogo e é por isso que é assim, mas isso faz com que esse modelo não gere absolutamente nenhuma perda para a “banca” em hipótese nenhuma: existe risco pessoal para o jogador pela percepção de valor dentro do jogo que uma recompensa pode ter, mas não existe risco nenhum para quem está vendendo a lootbox.

Nesse sentido, lootbox não funciona como aposta — são outro tipo de ferramenta e outro tipo de problema sobre o qual legislações normais sobre jogos de azar podem simplesmente não funcionar, já que a lootbox precisa de poucas “vítimas” para a monetização. Economias infinitas são o que torna lootboxes particularmente predatórias, mas fundamentalmente diferentes de jogos de azar. Por isso, é muito necessário analisar a situação em termos do que ela é, como um problema de game design, de psicologia e de cultura ao mesmo tempo. Soluções pra controvérsias podem vir de vários lugares, mas nunca de atalhos.

P.S.: “Bom, então é só tornar as economias finitas,” eu gostaria de dizer, mas claro que não é tão simples. Existe uma razão pela qual jogos não funcionam assim.

Deixa eu contar a história de Endless Online.

Eu sempre conto a história desse jogo porque foi uma das coisas mais incríveis que já me aconteceram em videogames e provavelmente isso nunca vai se repetir. Eu espero que se repita, porque é uma ótima oportunidade de usar a palavra “conflagração”. Mas eu espero que não se repita, porque só nos jogos mais desleixados ia acontecer um negócio desse.

Pois bem, Endless Online era (é?) um MMORPG normal, com monstros, armas, classes (embora só duas de cinco realmente funcionassem) e drops aleatórios. A única coisa mais ou menos especial dele é (era?) o fato de que ele era 100% de graça, porque era patrocinado não lembro por quem. Como todo RPG, tinha economia infinita — até o dia em que descobriram um bug que permitia duplicar qualquer coisa dentro do jogo.

Nesse dia específico, trilhões de moedas de outro foram geradas e jogadas no chão, bem como itens raros e poderosos. O bug foi corrigido no dia seguinte, mas, por alguma razão, tudo que foi duplicado continuou dentro do jogo e os administradores estavam tão pouco se fodendo que nem foram atrás de saber o que tinha acontecido.

Ocorreu que existia tanto dinheiro e tantos itens no jogo que a economia deixou de ser infinita na prática. Claro, você até poderia vender um item em uma loja por 10000 dinheiros. Podia ter um item que retornasse 1 milhão de dinheiros. Não importava. Todas as quantias trocadas por itens úteis para as pessoas, como armas avançadas, eram ainda mil vezes maiores do que qualquer coisa que você conseguisse juntar na prática através da economia infinita.

Assim, ela deixou de ser gerenciada pelo jogo e passou a ser gerenciada pela comunidade: pessoas detinham os itens duplicados e o dinheiro. Era mais conveniente obter os itens raros duplicados através de “trabalhos” eminentemente “humanos”, como o de intermediário em uma venda de conta, do que fazer a missão correspondente.

Em um cenário como esse, lootboxes afetariam diretamente uma economia, inserindo valor real dentro dela (um item duplicado a mais afetaria o preço de todos os outros itens duplicados) e, ainda mais, uma lootbox feita a partir de recursos finitos e escassos, trocada por dinheiro, seria facilmente caracterizável como aposta, já que uma pessoa ganhar o item raro significa que as outras não ganharam.

Talvez um dia um jogo terá sua economia gerenciada pelos próprios jogadores, o que tornaria contra-produtivo o acesso irrestrito a itens. Mas não se engane: jogo de azar é um fenômeno específico. Ainda que lootboxes produzam efeitos psicológicos parecidos, são um bicho diferente.

Palas
Obrigado por concordar.

    2 Comentários

    1. No Wakfu não existe comercio com npcs, para se obter algum item é farmando nos calabouços ou comprando de outros jogadores. As lootboxes lá são 90% de itens cosméticos, porem todos os itens das caixas podem ser comprados individualmente na loja.

      1. E como você avalia esse sistema? Você acha ele ok por serem só itens cosméticos?

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