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Uma única história de amor

Já mandei esse papo antes, de que assistir os detalhes bobos da vida dos outros ao invés de lutas épicas e treinamentos para fazer a cachoeira correr ao contrário é meu clube. Não que não exista no repertório de coisas assistidas todas essas bobagens de Batalha das Doze Casas e torneio de sucessão da Genkai, segurem suas pedras – mas o negócio é que são os personagens, são as pessoas, mesmo que de mentira, que ligam meu positivo com  meu negativo, e não a batalha contra o mal. O episódio filler em que todo mundo vai para praia/ryokan/onsen geralmente ser meu favorito diz muito.

O buraco do slice of life cai direto no shoujo, e isso é fato. Existe muito mais conteúdo sobre cotidiano lapidado nos moldes do público feminino do que do masculino (eis a classificação shoujo/josei e shounen/seinen), e a busca por novelas animadas com personagens relevantes é árdua e contínua. Mas aí, e é esse o argumento que quero defender, é que shoujo é um lixão de estrogênio.

Pessoas não sabem escrever sobre outras pessoas, na maioria das vezes. Vivemos tanto entre nós, outros seres humanos, que desenvolvemos um bloqueio extremo do que realmente ser humano é. Escrevemos falando de adolescentes apaixonados e adultos embriagados como se nunca tivéssemos sido um ou outro na vida, como alienígenas escrevendo sobre o amor, apelando para os instintos mais básicos de “awn” e “own” para conseguir um mínimo de reação e engajamento do público.

Criadores de conteúdo a respeito de humanos, isso de contar o que as pessoas fazem quando chegam em casa cansadas e que programas de TV gostam de assistir, se apegam demais a alguns ideais clichêzaços que não servem para outra coisa além de a) criar drama, b) encher linguiça eternamente e c) preencher vinte e duas páginas de roteiro por episódio. E esses ideias fazem com que todos os personagens se tornem odiáveis, todas as situações se tornem bizonhas, todo relacionamento se torne um amontoadaço de emoções e picos de tesão sendo tão ignorados que no final tudo que queremos é que, por favor, pelo menos peguem na mão um do outro. Aí eles pegam e a plateia vai ao delírio.
Shoujo é difícil.

Entendam: eu sei porque a encheção de linguiça, o drama e os clichês existem. É uma fórmula mágica fácil de seguir, uma receita de bolo que leva de Y para Z e resulta em duas temporadas de 12 episódios sobre absolutamente nada, mas que as pessoas engolem por ser “fofinho”. Mas o que quero ver é gente feliz, gente realizando coisas, gente andando na vida, e não gente fofinha que não sabe fazer contato visual.
Todo shoujo acaba sendo exatamente isso: menina se apaixona por menino; menino obviamente se apaixona por menina; os dois ficam de nheconheco com dúvida quanto aos sentimentos um do outro, mas nunca expressam nada um pro outro, só para amigos próximos, que não fazem NADA para resolver a situação, só acham engraçado; menino e menina se desentendem pelo motivo mais débil mental já criado pela humanidade como, por exemplo, outro menino foi transferido para a escola e agora menina conversa com ele também; menino e menina acabam se entendendo de novo em uma linda cena debaixo de pétalas de cerejeira; menino e menina seguram a mão um do outro; fim.

Se eu quisesse assistir a isso, buscaria as fitas que o serviço secreto gravou de mim durante a adolescência.

Não que não existam shoujos formulinha bons, mas eles se salvam não por fugir do clichê, e sim por torcer aqui e ali pra fingir diferença. Kimi ni Todoke é um bom exemplo de receita de bolo que acabou caindo na minha graça pelos personagens secundários, com motivações e dramas muito mais concretos que a falta de hormônios do casal principal. Lovely Complex outro, mas porque existe algo nos personagens além do papel “seremos um casal eventualmente mas somos burros demais pra fazer isso acontecer logo”. Mas o gênero é aniquilador e certeiro: nada escapa das garras dos doze episódios de rosquerosque nada acontece, para um episódio final de “ah é né, o amor”.
Como salvar a humanidade desse mal que é o entretenimento romântico mal resolvido? É só perguntar para Ore Monogatari!!.

A expectativa é estraçalhada e deixada à míngua na beira da estrada só de bater o olho no primeiro episódio. Takeo, o personagem principal, é um Giant Baba adolescente. Cara gigante, coração mole, curte a família, curte os animais, mas por ser o próprio Magilla Gorilla reencarnado não faz muito sucesso no campo do amor. Seu amigo de infância, por outro lado, é o modelo shoujo “te gosto tanto pega na minha mão” que poderíamos esperar. Suna é educado, estudioso, cabelos ao vento comercial de shampoo, alto, gentil. Um é o coração, o outro o cérebro, mas nenhum é bobo, nenhum é menor que o outro. A diferença entre eles não os torna menores, porque não existe ninguém menor em uma amizade real. Eles são.
Quando Rinko entra na história é claro que todos acham que seu interesse amoroso vai ser por Suna. A dupla a salva de um maluco encoxador no trem, ela agradece com docinhos, os três marcam volta e meia de se encontrar no parque para comer as coisas que ela faz. Takeo vai se sentindo desconfortável por estar atrapalhando o casal, decide não aparecer em um próximo encontro. Rinko pede que Suna não venha no próximo e diga para, pelo amor de Deus, Takeo vir, porque muito tontola ele achar que não pode ser amado só por ser gigante. Eventualmente, uns vinte, trinta minutos adiante na história, ela se declara, ele fica bobo, todos ficam felizes.

CAPLOW! Dois episódios, três no máximo, e temos um casal formado e sem histerias. Devidamente declarados, devidamente acertados, ainda meio imersos naquela dinâmica japonesa em que todo contato físico precisa ser minimamente calculado, mas não estamos lidando com incertezas. Os sentimentos são reais, as motivações são reais, nos resta ver como essas coisas caminham juntas no dia-a-dia. E existe um dia-a-dia, uma força motriz que leva todos os personagens a fazerem coisas e serem pessoas fora daquele ciclo “amor>escola>casa”. Rinko quer ser chef pâtissier quando se formar, e é no que investe seu tempo, sua criatividade e eventualmente suas férias; Takeo divide seu tempo entre trabalhar meio período em um macho cafe e cuidar da irmã recém nascida. Há independência entre os personagens, há diferenças e distâncias, e é exatamente isso que torna interessante vê-los juntos, da manhã até a noite, lidando com a bagunça que é o outro.

Os conflitos que desenham o restante dos episódios até a marca dos 24 não são mais emocionais, mas sim casuais. É sobre como as pessoas tratam Takeo por ele ser gigante e como Rinko quebra a cara de todo mundo por não ter vergonha de ter um namorado esquisito, como Suna se livra de sua casca Protagonista Shoujo sendo alheio a praticamente tudo que existe e só vivendo. É ultrapassada a marca do “esse relacionamento vai acontecer um dia” e chegamos no status de “essas são coisas que acontecem em relacionamentos” e, estando em um relacionamento, posso dizer que são mesmo.

Porque shoujo não precisa não falar de amor, não precisa evitar falar de duas pessoas que se gostam e essa dinâmica Malhação toda. É o que é, é o que o público quer, é o que funciona. Mas não é porque é sobre relacionamentos que precisa ser a forma mais básica, rasa e artificial. Essa idealização do namoro casto, o namoro de olhares, da conquista trabalhosa e dramática ser a única que é real, não é errada, mas é desgastada e completamente em desacordo com o que essas relações íntimas podem também ser. Rinko e Takeo se beijam uma, no máximo duas vezes, e são beijos envergonhados, mas que simbolizam querer, simbolizam que não há nada de proibido ou errado no toque. Rinko deixa claro, mesmo que sem jeito, que não só quer aquilo como quer mais que aquilo, eventualmente, quando Takeo se sentir confortável. E também não precisa ter mais que isso, não para o espectador. É uma linha exata, entre o denominador mais comum do “namoramos porque dizemos que sim mas nunca encostamos um no outro” e o denominador assustador daquele josei que a menina transa com um monge. A evolução pode e deve ser gradual, os estágios da dança a dois são mais do que pontuação em um roteiro. E é isso que faz escrever a respeito de humanos ser para humanos.

Takeo acredita que as pessoas deveriam ser mais diretas e sem rodeios sobre seus sentimentos. Rinko acredita que, quando se quer alguma coisa, deve-se lutar por isso sem medo, e enfrentar com sua certeza as dúvidas dos outros. Juntos, personificam não só como as criações dentro do gênero deveriam ser tratadas, mas como relacionamentos deveriam ser compreendidos – sem complicação, sem neuras, com o coração aberto. Ore Monogatari!! é um anime bom, o shoujo objetivamente bom, para quem tem coração puro e quer ter sentimentos bonitos por 24 episódios, com zero mentiras quanto ao amor.

Maciel
Narrativas interativas e plantas mortas-vivas. Cansada demais para a internet, mas tentando sempre.

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