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O Sol Artificial

A série Boktai existiu brevemente no Game Boy Advance entre 2003 e 2005 (apesar de ter uma breve aparição muito menos interessante no Nintendo DS em 2006) e através de um mundo destruído, cidades refúgio, espadinhas e pistolinhas, conta a história de Django, um menino que anda por aí arrastando caixões (igual o filme de 1966 mesmo) com aberrações vampirescas dentro para poder vencê-las com o poder mágico do Sol. Apesar de se segurar muito bem por suas maluquices narrativas e por ser bem charmosinho visualmente, Boktai se destacou por um motivo muito mais curioso: sua fita continha um sensor de luz solar embutido, que servia para, entre outras coisas de menor importância mas igualmente atrativas, controlar o poder das diversas armas de seu protagonista.

A munição de Django dentro do jogo é contada pela força do sol do nosso mundo (e o sensor era inteligente o bastante pra não ser enganado por lâmpadas normais que temos dentro de casa [só ultravioletas]) e isso infere algumas coisas: você pode “guardar” luz em um banco dentro do jogo (e pode também pegar luz emprestada desse banco, embora precise pagar com juros depois) e usar em momentos em que está em lugares escuros no mundo real, mas não pode acessar os pontos de Purificação dos vampiros, que são mini-lutas contra chefes para vencê-los de vez, pois para isso precisa da luz de verdade. Não pode também ficar muito tempo sob o sol (ou enganando o jogo com uma luz ultravioleta) pois depois de um tempo de contato constante, sua arma fica no estado de “overheat” e você não pode usá-la por alguns minutos. Em outros momentos você precisa tapar o sensor pois algumas plataformas só aparecem se tiver uma quantidade específica de luz atingindo a fita, ou correntes de vento que compartilham sua força com a força solar.

Isso resulta em um jogo muito situacional. Ele foi projetado para você jogar em momentos específicos do dia (e por ser um jogo japonês com publicidade focada em jovens de idade escolar, provavelmente também foi feito pensando em fazer a molecada sair de casa um pouco) e não quando você quisesse. Era meio que um compromisso – você só podia jogar Boktai enquanto o sol estava no céu, mas tinha que conciliar isso com a escola/faculdade/trabalho, que também são compromissos que ocorrem durante o dia.- Mesmo sendo num videogame portátil, a praticidade de pegar e jogar não existe, por precisar de muitos fatores externos para seu aproveitamento real (e se está chovendo?).

Essas restrições conceituais, apesar de empoladas para qualquer utilitarista, serviam a propósitos únicos: tratar o jogo como um Objeto Que Existe além dos momentos em que o tocamos, exigindo que nos adequássemos às suas regras de uma maneira meta-textual (afinal, todo jogo é um conjunto de regras, mas na maioria precisamos nos adequar enquanto jogamos, e este nos fazia adequar para começar a jogar) e respeitá-lo em um nível de atividade que ia um pouco além da interação padrão jogador-jogo. Jogar o jogo é um esforço meio inadmissível no mundo moderno, mas gerou relatos emergentes muito interessantes como esse aqui do Jeremy Parish, dizendo que a luta final foi muito mais intensa pois ele a terminou durante o pôr-do-sol, e se falhasse só poderia tentar de novo no outro dia.

ON THE END OF ALL THINGS: Dark Souls on the GBA in 2003 | by  optimisticDuelist | ZEAL | Medium

Eu só joguei Boktai em emulador. Obviamente a ROM não tem sensor solar, então depende de um hack: segurar L +  direita faz a barrinha de poder aumentar, segurar L + esquerda faz ela diminuir. Seria impossível para mim viver esse tipo de coisa que Jeremy disse, ou mesmo ter que me programar para jogar o jogo, já que consigo ter quanta luz solar eu quiser mesmo durante a noite (o que cria um contraste bizarro: o jogo fica escuro, pois segue o relógio do sistema [gba, windows] mas a barrinha de luz solar está lá cheiona, dissonante). Boktai foi um jogo muito confortável pra mim devido a essas coisas, embora tivesse seus próprios desafios também causados pela maneira que o hack é construído. Mesmo segurando o L, se eu apertava para algum lado para manipular a luz solar, Django ainda se mexia e isso gerava Situações Inusitadas quando precisava navegar espaços estreitos e manipular a luz ao mesmo tempo para aparecerem plataformas ou não ser empurrado pelo vento. Por ele ser um jogo que não afetava tanto minhas programações no mundo real e eu não tinha que agendarem volta delas, pude ter prioridades diferentes na hora de prestar atenção em seu mundo e sistemas, já que a tensão era um pouco menor, mais ou menos como funciona nos momentos que você rejoga algo que gosta muito e, por já conhecer suas nuances, pode perceber outras que não perceberia estando preocupado com o desconhecido.

A dinâmica sobre PODER DO AUTOR gerada nisso é possivelmente interessante, mas não é nem questão de negar suas intenções, e sim de ver seus produtos como coisas que se moldam em si após estarem em contato com o resto do mundo. Experiências são diferentes em todos os pormenores, mesmo respeitando a obra original em sua completude e os seus aspectos projetados (jogando no console para o qual ela foi feita, no idioma que ela foi escrita, etc), mas variam dentre as nossas próprias condições externas: jogar gripado, jogar triste, jogar feliz, jogar com pressa, jogar para relaxar e jogar se concentrando. É essencialmente impossível aproveitar uma obra interativa exatamente da mesma maneira de outras pessoas (e talvez obras passivas também, mas essa é uma discussão com outras implicações) porque a carcaça de aproveitamento somos nós, humanos, e nós somos todos diferentes, ainda que neguemos coisas como gosto e opinião. Condições estéticas se demonstram de infinitas maneiras diferentes e essas infinitas maneiras geram outras infinitas maneiras, sucessiva e infinitamente.

Apesar de sacrifícios na transposição de sistemas, coisas novas foram geradas na mesma intensidade, criando uma obra (em si) diferente, uma camada variável acima da camada variável inerente ao aproveitamento de qualquer coisa por qualquer pessoa. A prática de seus próprios controles em relação à barra de luz, a despreocupação com o horário de vencer os chefes gerando uma mentalidade menos urgente na hora de explorar calabouços antes do anoitecer, até a possibilidade de usar save state (onde, se não me engano, conflitava com o jogo de umas maneiras malucas que geravam bugs, mas não tenho mais tanta certeza sobre essa afirmação). O Boktai que eu joguei é algo completamente diferente do que foi projetado para ser, como presumiam que seria o público alvo, até o ambiente em que o jogo seria jogado (as mensagens de “não fique muito tempo no sol” assumiram um ar um pouco mais charmoso e preocupado, fofinho até, do que condescendente), embora o meu interesse no jogo fosse, previamente, completamente ditado pelo negócio do sol. Pensamentos de “nossa, isso aqui seria de fato muito sagaz em um game boy advance” não eram raros, mesmo que eles só existissem a nível intelectual mesmo, e nunca algo que eu estivesse de fato vivendo materialmente.

Otenko é um personagem que representa o Sol, basicamente. É a vontade do Sol no mundo dos humanos, seu mensageiro principal. No jogo em si ele é o personagem secundário que auxilia a navegação, como uma fada de Zelda, e é um dos únicos seres que acompanham Django em todos os lugares que ele vai. Serve como uma pontinha de esperança: mesmo que o Sol (de verdade) não alcance esse cômodo em específico desse castelo, Otenko sempre está ao seu lado, sinalizando pelo que você deve lutar. Otenko, é claro, é apenas um personagem de videogame, um conjunto de dados, caracteres e imagens. Na versão de Game Boy Advance ele servia como a transposição do Sol real para o expoente digital do jogo; mas para quem jogou em emulador, é o único sol que havia. A nossa luz solar, independente da boa vontade de São Pedro, também era representada apenas por dados dentro do jogo, com nenhuma diferença da existência do próprio Otenko. A interpretação de sua mitologia pareceu, talvez, menos importante dentro do universo de Boktai como uma relação literal (já que, bem, não sentimos o calor literal do sol caso estejamos num emulador dentro do nosso quarto), mas mais significativa, por ser a única demonstração possível dele.

Retrô: Boktai: The Sun is in Your Hand – Faru's Eyes

Eu, talvez, nunca tenha jogado Boktai de verdade. Joguei uma versão modificada, cheia de concessões, até errada por não ser o modo projetado previamente por seus produtores e diretores. O meu interesse no jogo (a doideira da luz solar) nunca foi concretizado enquanto jogava. Quando recomendo para alguém e esta pessoa se interessa pelo mesmo motivo, há uma possibilidade baixíssima dela ir procurar um game boy advance e uma fita de boktai e ficar na janela do apartamento enquanto joga. Boktai, portanto, nunca sairá oficialmente em consoles modernos, por não existir mais a possibilidade com esse tipo de experimentação em hardware, e também nunca receberá versões digitais por, mais uma vez, ser impossível recriar a experiência específica que seria naquele portátil com sua fitinha mais pesada dentro por causa do sensor (inclusive sua versão de DS, Lunar Knights, já não usava mais o sensor: era controlado por um sistema de clima dentro do jogo, que ditava quanta luz solar teria em cada missão [apesar de, se colocada uma fitinha de algum dos primeiros Boktai, ainda se manteria a funcionalidade deles usando o sensor secundário {mas não joguem Lunar Knights, não é tão legal, e nem por esses motivos}]).

O meu Boktai, com meu sol artificial, porém, não foi menor que qualquer outro. Suas diferenças não eram lineares, resultando apenas em um jogo mais fácil ou mais difícil, mas criavam algo totalmente novo, que nenhuma das pessoas que trabalhou no jogo poderia ter previsto. Nunca esquecerei seus cenários, seus quebra-cabeças e as maracutaias que eu precisava fazer com a mão para manipular a luz solar durante alguma luta difícil. Todos os seus sistemas foram pensados por alguém, mas ao tocar o resto do mundo espiralaram de maneiras tão diferentes e caóticas que poderiam existir apenas após isso ter acontecido. A essência das mudanças também influencia nisso: não foi uma arrogância que partiu de um “eu vou melhorar esse jogo pois os produtores não sabiam o que é melhor”, e sim um “eu gosto tanto da ideia disso que vou dar um jeito de jogar mesmo assim”. O meu Boktai, com meu sol artificial, é sempre o Boktai que recomendo e o Boktai que gosto. Talvez eu achasse chato jogar no GBA, ou talvez não achasse tão bonito com a telinha tão pequena. Talvez eu goste mais dos botões do controle que eu uso no PC do que os daquele portátil. Pode ser que todas essas variáveis sejam falsas e o esquema seja jogar lá mesmo, porque é muito melhor e estou só me enganando.

Talvez um dia eu jogue e descubra como é conversar com o Sol de verdade.

Neozao
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