Homecoming-Aranha
O mundo já se acostumou com filmes de super-heróis a ponto de se tornarem quase um novo subgênero no cinema. Goste ou odeie esse tipo de filme, é fato que sua existência já é algo tão natural que o consciente coletivo acabou aceitando ser algo que não vai acabar tão cedo (ainda mais com as duas principais empresas no ramo já planejando agenda de lançamentos até para o seu neto assistir).
Esse nicho de filme já existe há muito mais tempo do que a gente costuma lembrar, com um período forte na década de 80 e começo da década de 90, dando uma esfriada boa na mesma medida em que os filmes do Batman dessa época desciam na qualidade. Acredito que a fase na qual estamos no momento foi ajeitada inicial pelos X-Men em 2000, e realmente explodiu com o Spider-Man do Sam Raimi de 2002.
Então o Homem-Aranha é um herói bem icônico para esse tipo de filme, estando em sua terceira encarnação no cinema (quarta em filmes gerais, se contarmos o que foi feito para TV em 1977), e sempre causando expectativa no público. Público esse que, mesmo animado, não aguenta mais lembrar como o herói era um bocó que foi mordido por uma aranha e ficou pica demais, embora com muitos outros problemas pessoais que esse poder lhe trouxe.
O que fica claro então é que uma enorme massa ainda quer ver o amigo da vizinhança no cinema, e os produtores também querem vender esse produto tão requisitado, mas ambos sabem que a fórmula original já deu no saco. Existem alguns fãs de quadrinho que acabam sempre reclamando da falta de uma coisa ou outra, ou de algumas liberdades criativas, mas acho que nem eles iam aguentar outro arco do Tio Ben morrendo no cinema. Sério galera, vamos concordar: já deu.
Mas, para efeitos de narrativa, quando você está começando um novo Homem-Aranha (e dessa vez faz um pouco mais de sentido por todo o drama de troca de estúdio) a história tem que começar de algum começo, seja ele qual for. Usando um pouco de outro filme da Marvel que o herói apareceu, Guerra Civil, e explorando o conhecimento global que todos já têm sobre o assunto, os produtores tentam um novo ângulo. Acabam por misturar um pouco do herói clássico com alguns toques do universo Ultimate e temperando com pitadas das várias reformulações esporádicas que a Marvel publica, para servir uma Torta Metafórica Spider-Man®. Você olha e sabe que é Homem-Aranha, mas, ao contrário dos seus antecessores, não sabe exatamente o gosto que vai ter quando saborear.
Enquanto a metáfora horrível do último parágrafo ainda não perde a validade, é bom notar que, dentre os ingredientes que compõem a torta, estão todos os elementos que antes eu julguei estarem gastos: o fato dele ter sido picado por uma aranha, o tio Ben ter morrido, a tia May passando dificuldades, ele sendo zoado na escola; mas nada disso assume um arco todo na história como antes, e são incorporados brevemente em outras cenas da narrativa. Por exemplo: indo para a escola, o amigo de Peter, que agora sabe que ele é o Homem-Aranha, pergunta se ele também ganharia super-poderes caso fosse mordido pela mesma aranha. Pronto, você acabou de lembrar os espectadores de uma parte da lenda e não precisou fazer toda a via crucis cinematográfica do rapaz sendo mordido em uma fatídica excursão escolar.
Então a maioria dos elementos conhecidos estão lá, mas de forma casual e apresentados com muitas outras coisas novas que entretém o espectador casual e puxam a curiosidade de quem conhece mais do herói, sabendo que alguns pontos não deveriam estar ali ou não são exatamente como se esperaria de uma adaptação totalmente clássica. Na verdade, essa casualidade acaba trazendo um outro aspecto do personagem que ainda não tínhamos visto nas telas e que era abordado muito no início da história do herói: o amadorismo e a fragilidade.
O filme do Sam Raimi também tem um pouco disso, dele descobrindo seus poderes e mergulhando na tentativa e erro, mas ele não trata muito bem do humor do Peter e da forma como ele encara as coisas. O fato é que o rapaz tem sim toda aquele lance de responsabilidades que virou até meme por causa do primeiro filme, mas ele também queria ser um herói simplesmente por ser muito bacana ser um. Isso mesmo depois do seu tio morrer, mas é algo que fica apenas implícito, com o Peter sempre usando o dever e o bem maior como máscaras para seu desejo. Quando a história completa é contada, sempre vemos ele sofrendo na mão de pessoas mais populares exatamente para dar o contraste dele acabar se tornando o ser mais bacana e popular que existe, não o mais responsável.
E neste filme finalmente conseguimos ver esse lado do herói, que acaba extravasando para outras partes do roteiro e torna tudo muito mais honesto e limpo. Certo momento no começo do filme, um homem em uma barraquinha de cachorro-quente vê o Homem-Aranha e pede para ele dar um mortal. Sério. Mas, pensando bem, se você visse o Homem-Aranha na rua provavelmente também pediria algo idiota do tipo; e o rapaz, sendo conhecido e requisitado como nunca antes foi, provavelmente cederia. Meu propósito é mostrar que tudo isso leva a história aqui vista em um patamar que normalmente não vemos nos filmes da Marvel: um patamar mais crível e pessoal.
Portanto, a cada decisão desse tipo que o filme toma ele se afasta um tanto da visão que temos do Homem-Aranha clássico, porém se conecta cada vez mais com a essência subliminar e não óbvia do personagem. Se unindo com a ideia que as histórias sobre o Aranha sempre são mais sobre ele como pessoa se projetando no herói e não sobre o herói em si, acabamos suprindo a necessidade por mais conteúdo, porém com certo frescor e novidade.
Essa sensação de estar desbravando novamente a história de um personagem totalmente conhecido também vem com outro aspecto importante do herói, que é sua fragilidade. Na tentativa de dar atenção à vários aspectos de sua vida (conciliando sua família e amigos, suas responsabilidades como pessoa e como justiceiro, e seu desejo de ser mais do que é), o aracnídeo sempre foi extremamente vulnerável. No filme isso é retratado de uma maneira tão impactante que o espectador acaba torcendo simplesmente para o herói sobreviver e não exatamente para vencer.
Como resultado final da construção conseguimos ver uma possibilidade de uma nova era, assim como foi em 2002, esquecendo-se um pouco das mesmas fórmulas e métodos para gerar algo com mais carisma e conteúdo. Talvez esse filme nem seja seu filme do Homem-Aranha favorito, ou o reinício definitivo do herói, mas eu tenho certeza que vai ser um dos títulos de que mais iremos nos lembrar no futuro.
O objetivo desse texto, além de exaltar o quão bom é Spider-Man: Homecoming, é mostrar o quão importante é se conectar com a obra original de maneira mais profunda nesse nicho de filmes. Deve-se valorizar mais a introspecção, percebendo as motivações dos personagens e os temas principais; em detrimento ao que normalmente se busca, que é a literalidade superficial de uma adaptação um para um. Mesmo que na sua produção você não tenha nas mãos um Homem-Aranha, que não seja exatamente um filme (já que esse site trata sobre tudo), ou que não seja bem uma adaptação, existe uma lição aqui: é preciso entender o espírito essencial da história que você está contando para manter pontos que de outra forma poderiam ser monótonos e repetitivos, interessantes e inovadores.