O nome do seu pai é Dragon Quest
Dá para ver o objetivo final – o castelo do Dragonlord – a primeira vez que você sai para o mapa de Dragon Quest, alguns minutos depois de receber as instruções do rei, que consistem em salvar uma princesa e, logo depois, o mundo todo. Não dá, é claro, para chegar em tal objetivo final assim que você o vê, mas ele te tenta todas as vezes que você volta para o castelo (e você volta muito para o castelo, já que lá é o único lugar que podemos salvar o jogo). Em resumo, tudo o que você tem que fazer nesta história é criar uma ponte para conseguir chegar na moradia no vilão e o único motivo para isso ser uma Jornada Épica é o fato de que ninguém naquele mundo teve a ideia de manter um caderno de árvores genealógicas ou que o seu pai estava bêbado demais para te registrar no cartório, então você, o herói, precisa provar que é um descendente de outro herói que salvou o mundo umas gerações atrás.
O que nunca acontecerá nessa pequena dúzia de horas em que você anda para lá e para cá pelo mundo é ver uma tela de game over. Dragon Quest nunca quer que você pare de jogar. Ele morde e assopra. Se você morre, é punido – metade do seu dinheiro vai embora, mas você aparece na sala do rei de novo, sem perder seu equipamento. Talvez você perca seu progresso, isso depende do ponto de vista, já que grande parte do “progresso” do jogo é justamente ficar arrumando dinheiro para comprar equipamentos melhores, mas não perde os eventos que viu, os itens que acumulou e as cavernas que explorou. O rei sequer briga com você – só diz que ainda dá tempo de salvar tudo, é só botar o pé na estrada de novo. Mas aí, na próxima vez que você tentar chegar naquele pântano, vai lembrar que o Shadow Undead pode te matar na sorte se desviar de todos os seus ataques, e por isso seu HP não pode ficar abaixo de 20 em nenhum momento da luta. Umas duas magias de cura resolvem sem problema e a vida continua.
Há uma diferença entre o aconchego de Dragon Quest e de um jogo como Kirby – que te bombardeia de tranquilidade o tempo inteiro, tornando uma experiência constantemente agradável no sentido mais simples da coisa – e tal diferença é que em vez de ser projetado para te relaxar o tempo inteiro, é feito para te consolar caso (quando) as coisas deem (dão) errado. Dragon Quest não é fácil. Você só tem um personagem, tendo que gerenciar bem seu MP para se curar quando precisar, criar luz dentro das cavernas, se teleportar para fora delas e retornar ao castelo quando precisar ou quiser.
Os itens são caros e recompensam a paciência de juntar dinheiro por algumas horas, mas sempre com o risco de perder metade dele, além de que, via de regra, quanto mais longe de uma cidade você está, mais fortes são os monstros. Alguns eventos são meio obtusos de se descobrir e as direções são dadas através de diálogos não necessariamente obrigatórios, espalhados pelos personagens que vivem nas cidades. É um jogo muito inóspito, e curto. Não costumam se lembrar dele por isso, mas também é um tanto solitário.
Afinal, nenhuma das cidades é a sua, as pessoas não acreditam em você, seu trabalho parece sempre anônimo (quem conta quantos homens-lobo morrem em volta da cidade a cada hora?) e temos que fazer tudo à pé. Mesmo podendo voltar ao castelo à qualquer momento com o uso de um feitiço específico, temos que pensar que a viagem de volta ao ponto em que estava é manual mais uma vez.
Yuji Horii projetava jogos que recompensavam esforço por saber que as pessoas na sociedade japonesa precisavam desse escapismo após as labutas de suas vidas profissionais, mas ainda era fruto de tal cultura – não poderia nos recompensar o tempo todo, pois assim a pungência diminuiria. A recompensa é só quando a gente encontra uma cidade no meio das montanhas após estar sem MP por quatro batalhas, ou quando conseguimos um dos itens que provam a nossa genealogia e voltamos para o castelo para conseguir salvar. A recompensa é quando a gente consegue decorar todo o mapa após passar por ele tantas vezes, sabendo a direção geral que vemos seguir para chegar em alguma cidade específica, quando conseguimos juntar o dinheiro para comprar a Armadura Mágica e ainda sobra um pouquinho para dormirmos no hotel, que é sempre barato. Quando encontramos a princesa e descobrimos que estamos só na metade do jogo, mas podemos ganhar o beijo ali mesmo, já que precisamos saber o que perderíamos caso desistíssemos do resto da jornada e tudo fosse destruído.
Hoje essa mania por recompensa nos mimou um pouco. Elas não são muito mais causadas pelo nosso esforço no mundo do jogo, de maneira diegética, e sim pelo nosso esforço de apertar os botões, de separar nosso tempo. São “meta-recompensas”. A gratificação instantânea que precisa vir, afinal nós pagamos, separamos tempo, gastamos internet, gasolina, frete, colocamos o jogo no videogame e sentamos no sofá. Ela tem que vir. É nosso direito.
Mesmo que não tenha graça.
Neste Dragon Quest nunca anoitece, mas todas as cavernas são escuras. No começo do jogo precisamos comprar tochas para poder navegá-las direito, um pouco depois ganhamos um feitiço que serve ao mesmo propósito: iluminar os quadros adjacentes ao herói. A magia é um pouco mais limitada, pois além de gastar MP também perde o efeito após alguns minutos. A tocha dura para sempre, assim como o sol nos campos cheios de montanhas e árvores, planícies e pântanos. Quando achamos a armadura de nossos ancestrais nem os pântanos nos afetam mais, até porque precisamos passar por alguns para chegar nela. Não há nada bom que não venha logo depois de algo ruim ou difícil. Ele não é bem seu melhor amigo, como o V, e nem sua namorada, como o VIII. Ele é como se fosse seus pais, até por ter sido de fato o pai de todos os que vieram depois. Não dá para mimar muito, mas não dá para ser muito carrasco também. Nem tudo tem recompensa, mas tudo o que importa tem.
Até se você resolver trair tudo o que o jogo te deu, respondendo “sim” quando o chefe final te pergunta se você não quer se juntar a ele e ganhar metade do mundo, ele no máximo te dá outra palmada: faz você ter que passar o último castelo mais uma vez, mas o fato de te dar essa oportunidade é o marcante mesmo. A punição é um pouco mais severa, mas assim como todas as pessoas que importam, te dá mais uma chance. Trinta anos depois, em Dragon Quest Builders, eles resolveram mostrar o que aconteceria caso você realmente se aliasse com o chefe final do primeiro jogo. A essa altura, qualquer criança que jogou Dragon Quest anteriormente já estaria velha o bastante para entender que de vez em quando isso acontece, que algumas coisas existem independentemente de nossas ações e precisamos lidar com elas.
Assim como conseguir ver o castelo final assim que o jogo começa é importante para te dar o objetivo principal, conseguir ver o castelo inicial antes de entrar nesse final é abrasivo e seguro. O castelo inicial pode até adquirir um gosto amargo com o tempo – afinal, é a primeira coisa que você vê sempre que morre, o mesmo rei te dando outra chance, os mesmos cálculos mentais para saber qual é a metade do dinheiro que você tinha – mas nos momentos cruciais é justamente o que te dá a esperança de que não importa quantas vezes você morra, quais escolhas faça ou quantos níveis queira ganhar antes de tentar enfrentar o Dragonlord mais uma vez, ele estará lá para te dar outra chance, com o mesmo rei, e os mesmos guardas, a mesma princesa pra te dar um beijo e a mesma possibilidade de recuperar toda a sua grana matando Golems pela volta.
A série da Enix nunca teve um filho pródigo portando seu nome, mas conhece todas as histórias de quem passou por esta contenda familiar e serve como um pai adotivo para todos eles. É por isso que continua virtualmente a mesma série que era há trinta anos. Enquanto seus conterrâneos prezam pelo espetáculo, cada vez maiores, mais complicados, grandiosamente escritos e orquestrados (e, admitidamente, muitas vezes acertam mesmo em suas empreitadas) Dragon Quest prefere se manter como um refúgio para quando enjoamos um pouco de ter que abrir a wiki e pesquisar “nome do jogo + lore” no youtube para entender tudo o que ela nos apresenta. Assim como o castelo inicial à vista do castelo final, sabemos que no pior dos menus da Tri-Ace, no mais Sonic Adventure dos Final Fantasies, e no mais encarecador dos Shin Megami Tensei, sempre poderemos voltar pra mesma história de princesas, reinos, dragões e família, tendo ela um “I” ou um “XI” no nome.