Pensar e progredir em Final Fantasy VIII
Depois do estabelecimento dos arquétipos e formatos clássicos dos gêneros mais fundamentais por seus jogos-modelo, a hibridização de gêneros aproveitando do postulado por esses modelos foi um passo natural na exploração de possibilidades da mídia. Exemplos destes paradigmas aproveitados são de altíssimo perfil: Super Mario Bros. como jogo de ação e plataforma-2D por excelência; Wizardry e Dragon Quest como pedras de toque do conjunto de RPGs eletrônicos ocidentais e orientais respectivamente; King’s Quest (e seu antecessor Wizard and the Princess) enquanto o adventure gráfico fundamental; e muitos outros exemplos de jogos que trouxeram características que se firmaram como a viga mestra de seus gêneros.
Nascem, então, “subgêneros” (que deveriam ser chamados de gêneros híbridos, sendo resultado de fusões, não de derivações) desses experimentos de mescla de fórmulas. Combinam-se em diferentes grandezas a progressão sistêmico-numérica de um RPG com a exigência de reflexos mecânicos de um jogo de ação e se obtém um RPG de ação (ARPG), um subgênero em que as questões únicos dos gêneros formadores encontram respostas diferentes, em que destreza pura pode suprir as lacunas que o subdesenvolvimento numérico (níveis, stats, qualquer elemento que sirva de base para parâmetros de batalha ou encontros de qualquer natureza) e o contrário pode ser verdade – a preparação, construção e exploração desses sistemas podem superar requisitos de execução. E, claro, infinitos pontos de equilíbrio entre esses dois polos, o que revela o grande mérito dessas hibridizações: o reaproveitamento de elementos calcificados em reinos estabelecidos levou à conquista de novos territórios, novos domínios.
Os ARPGs são um exemplo fácil de casos em que subgêneros se firmam e largam as mãos dos pais. Um motivo central para isso é o fato de “elementos RPG” (claro, apenas alguns deles) serem componentes de aplicabilidade maleável, pode-se percebê-los nos mais opostos formatos de jogos, desde “dating sims” até jogos de estratégia, mesmo tão longe de casa permanecem os mesmos. A novidade das hibridizações se assentou (e ainda assenta) na irreverência, nas complexidades e nas eventuais sofisticações que o resultado dos experimentos com misturas trazem, não propriamente nos elementos que as compõem. Com a exclusão de misturas de elementos assíntotas é comum imaginar que o clichê se concretiza: coisas boas servem de componentes para a formação de coisas boas. Essa foi uma porção importante da evolução dos jogos eletrônicos, mas, levando-se em conta esse método de concepção, dificilmente foi uma empreitada ousada.
Ressalto que essa progressão geral esboçada não tem nenhuma pretensão historicista: é claro que diferentes gêneros e seus elementos se estabeleceram em momentos, ritmos, quantidades e intensidades diferentes. O padrão que percebemos é o da raridade de propostas e tentativas de inovações e experimentações. E se as tentativas são raras, mais raros ainda são os acertos. Afinal, o que poderia-se considerar como acerto? O mais evidente acerto seria um que transformasse e integrasse o paradigma como, por exemplo, o conceito de “segundo castelo” nos Castlevanias modernos, inaugurado em Castlevania: Symphony of the Night. O menos evidente é o acerto tópico, de sabor, transformativo ao invés de aditivo ou substitutivo. Menos evidente por ser menos duradouro, e de difícil comparação.
Uma introdução de quinhentas palavras serve para pintar o pano de fundo diante do qual atuará a tese principal do texto, bem como para sutilmente montar a postura com a qual a tese será apresentada. Depois de quinhentas palavras, porém, a sutileza parece um decoro infantil.
Final Fantasy VIII fez do sistema tradicional de progressão, construção e desenvolvimento de personagens o melhor que uma transformação dele pode e poderia ser. Aqui ressalto que a primeira visão que vem à cabeça, a da tela de Junction (se você jogou, se não ela será uma infernal: a dos textos bobos que denunciavam a obtusidade do sistema), é só parte da totalidade de modificações e adaptações que o jogo faz ao sistema tradicional.
Primeiro: qual é a “matéria base” utilizada e manipulada pelo jogo? O que se entende por sistema tradicional de progressão em RPGs é o seguinte, explicado de forma genérica e aberta: o seu personagem começa no primeiro degrau de uma escada de progresso inerente aos personagens, com um número determinado de modalidades de incremento e um modificador específico desse incremento, ou “concretamente”, o personagem começa no nível um, com uma quantidade de “slots” a serem preenchidos e alguns preenchimentos, sejam eles equipamentos, habilidades, o que seja. Esse conjunto é, para termos efetivos, com o que e como se joga o jogo, o próprio personagem. Desafios exigem que se faça X e utiliza-se desse conjunto para se executar a tarefa. Progressivamente as exigências das tarefas aumentam ou se diversificam, aumenta-se e diversifica-se, então, o conjunto que é o personagem, ou a solução ou as soluções dos desafios.
Tradicionalmente constrói-se a progressão com foco em sucessivamente oferecer a solução logo antes do desafio, “veja, você pode adquirir esses equipamentos nessa nova cidade”, “veja, estes monstros são um pouco mais fortes, as recompensas são melhores”, “veja, você pode aprender isto ou aquilo agora”. Solução e desafio são postos em sequência como os degraus de uma escada. Em RPGs é rara a sofisticação da fórmula, seja ela meticulosamente planejada (como acontece em Adventures, outro gênero) ou um efeito natural e espontâneo da construção do sistema (como o que ocorre, por exemplo, com a possibilidade de grind na primeira porção de Final Fantasy XII — o jogo tem como parâmetro o nível do personagem principal ao designar o nível de outros personagens que se juntam à party, em algumas horas com um esforço moderado é possível manipular esse pareamento no início do jogo, o que muda completamente a interação com áreas e inimigos subsequentes). FFVIII aborda a construção de seu sistema por vários ângulos, mas basicamente ele altera três pontos focais do modelo tradicional: o grau ou a determinação do desafios, o modo (método, momento, forma) de obtenção das soluções e as próprias soluções.
É difícil pontuar como cada um desses elementos unicamente influencia o sistema como um todo pois eles variam entre si e, embora concêntricos, atuam uns nos outros, modificam uns aos outros, e, como ficará claro, esse é o grande mérito da composição do sistema de progressão.
Comecemos pelo que chamamos de “soluções” e como são obtidas, ou seja, o conjunto de possibilidades que nos é dado para superar o desafio, e as peculiaridades de como as encontramos em FFVIII. Pode-se sempre resumir numericamente esse elemento, seja a expressão exata, como “a maça tem um poder de ataque de 8, a espada de 5” ou uma expressão da efetividade útil, o efeito prático-relativo — no caso anterior (excluindo-se outros modificadores, claro) a maça é factualmente mais poderosa que a espada, mas tem a mesma efetividade da espada se a tarefa é a de causar 10 pontos de dano, então nesse caso ambas armas têm o mesmo valor. Um método não preclui o outro, claro, mas em situações mais complexas (no caso de haver mais modificadores, mais combinações) é mais benéfico utilizar o segundo método, ou seja: a busca por uma solução “melhor” dentro desse sistema é a busca pela solução suficiente.
A construção de um sistema que percebe essa nuance tem dois resultados. O primeiro é a quebra da solução por acumulação. É extremamente comum em RPGs clássicos pensar em exemplos disso: um inimigo pode ser desenvolvido para ser derrotado em determinado momento com o uso de determinada ferramenta, mas ainda vai ser derrotado burlando o planejado se o nível do personagem for o dobro do que normalmente seria. A acumulação desse tipo é um esforço quantitativo de desenvolvimento, em que quanto mais se faz, mais se tem e melhor se é. Supera-se esse tipo de situação quando se foca no desenvolvimento qualitativo, ou seja, importa menos o quanto se tem de determinada coisa, mas a qualidade do que se tem.
Em FFVIII o progresso dos personagens é mediado por Guardian Forces. Os GFs são uma mescla de funções, são os summons do jogo, são os garantidores de habilidades, são o acesso que o personagem tem ao sistema de progressão, eles são o mediador máximo: sem um GF o personagem tem apenas o comando para atacar e seu limit break, enquanto magias, itens, habilidades variadas, o sistema de draw, o melhoramento dos pontos de status, o refinamento de itens e outras magias, dependem dos GFs. Essa mediação é feita pelo sistema de junction em variados graus, sendo possível utilizar das habilidades de refinamento sem que um GF esteja “juncionado” (junctioned, infelizmente não há palavra melhor, “equipado” não é bem exata) a um personagem, mas para se obter tal habilidade é necessário que o GF receba pontos específicos (Ability Points), o que requer a junção. Daí se tem que se o personagem está ou é forte, ele o é pois assim o fizeram os GFs. Veja, não é uma “ajuda” dos GFs. Em comparação a outros RPGs o crescimento nato dos personagens em FFVIII é quase nulo, a diferença de status entre um personagem no nível 99 e um personagem no nível 20 é facilmente suprida e superada com o uso do sistema de junction.
O sistema de junction tem três variações gerais: junciona-se habilidades passivas ou ativas (chamadas de “comandos”), magias e GFs. Juncionar GFs permite que se efetue as duas outras variações de junctions, então ela é a mais fundamental, mas é por meio das outras que se dá o aperfeiçoamento do personagem. As habilidades passivas, e comandos variam desde a possibilidade do uso de itens até a possibilidade de não ocorrerem batalhas aleatórias. Habilidades clássicas estão disponíveis por meio destes, e há habilidades que permitem roubar inimigos, curar condições negativas, reviver aliados, bem como o aumento passivo de pontos de status. As habilidades e comandos, então, permitem que se escolha como os personagens podem agir.
A junção de magias tem o objetivo de moldar a constituição de um personagem, quase o papel de equipamentos em jogos tradicionais, mas de forma mais sofisticada, mais bem engendrada. A junção de magias consiste em, basicamente, designar que uma magia que um personagem possui altere um componente constitutivo do personagem. Designe que uma magia altere sua força e, voilá, ela aumenta; designe que uma magia altere sua resistência elemental e você pode absorver o dano de tal elemento. Resumidamente, se pode alterar cada um dos status base como força, vitalidade, HP máximo, poder mágico, bem como imbuir qualidade elemental e de alteração de status ao ataque e à defesa do personagem.
A magia designada importa. A variação ocorre valendo-se de três critérios básicos: qualidade, quantidade e essência. A qualidade diz respeito ao nível hierárquico da magia – “Fire”, por exemplo, altera menos que “Firaga” quando juncionado. A quantidade implica que juncionar cinquenta unidades de uma magia tem mais efeito que a junção de vinte unidades. Já a essência determina que a natureza das magias causa variações na sua junção. Por exemplo, em geral, magias de cura alteram mais o HP máximo do que magias que causam status negativos quando juncionadas, da mesma forma, não é possível que se modifique a qualidade elemental do ataque ou da defesa de um personagem com uma magia sem elemento.
Percebe-se então a gama de possibilidades que a junção de magias traz. É melhor valorizar o HP total desse personagem ou sua capacidade de dano? Qual personagem devo proteger contra determinado status negativo, o que tem a função de curar o grupo? A quem devo dar a habilidade de causar status negativos com o ataque, quem age mais vezes por batalha ou quem tem maior chance de acerto? O sistema de junction torna interessante e altera o que antes seria óbvio: não se pode simplesmente otimizar recursos como tradicionalmente se podia, não se pode simplesmente comprar a melhor espada ou maça possível e seguir satisfeito, isso não é suficiente mais, e o melhor: não há apenas uma resposta certa. Claro, ironicamente, também se multiplicam as respostas erradas.
Mas como o jogo garante que o jogador tenha que se familiarizar com o sistema e não simplesmente use do método acumulativo? Por meio do parâmetro de progressão dos desafios.
Os desafios do sistema de progressão são os inimigos a serem enfrentados em FFVIII. A necessidade do uso do sistema de junction vem do fato dos desafios tomarem um aspecto do desenvolvimento de personagens como parâmetro. O nível médio do grupo determina o nível médio dos inimigos. E não é apenas um incremento numérico que os inimigos têm. Diferentes inimigos passam a ter novos ataques, novos padrões, cada um desses ataques ou padrões exigindo respostas diferentes, mais elaboradas. Esses incrementos retroalimentam o crescimento dos personagens por meio do sistema de junction também, logo inimigos mais fortes permitem a obtenção de magias mais fortes por meio do comando “draw”, bem como por meio do refinamento de novos itens que eventualmente os inimigos dão como recompensa ou que podem ser roubados.
O sistema de progressão de FFVIII é uma constante navegação em mares turbulentos, um complexo sistema de pesos e contra-pesos. As magias são armazenadas por unidades, podendo armazenar até 100 unidades de cada magia em cada personagem, sendo um uso corresponde a uma unidade. O uso de magias então reduz recursos de desenvolvimento de personagens, o que é ruim… Então é ruim usar magias! Essa é uma observação extremamente comum. Evidentemente não é tão simples assim.
O gerenciamento de recursos do jogo, ou seja, a obtenção e utilização de recursos, é uma atividade que requer exploração. Como tal recurso pode ser melhor utilizado? Como tal recurso pode ser melhor obtido? Qual recurso deve ser utilizado para que outro seja obtido? Todas são questões centrais do jogo. Primeiro: não há um só método de obter cada magia e item. Pode-se obter cinco “Firaga” refinando uma “Wizard Stone” com a habilidade “Fire Magic Refine”, usando o comando “Draw”, refinando cinco “fira”. Por sua vez, “Wizard Stones” podem ser obtidas refinando cartas dos inimigos “Vysage”, “Imp” e mais alguns, bem como são recompensas de outros inimigos. “Firas” podem ser refinadas de “fire”, “bomb fragments”, obtidas com o comando “Draw”. E não para por aí, há mais vários graus na escala. As cartas, por exemplo, podem ser obtidas com o comando “Card” e derrotando os inimigos. É absurda a redundância nos meios de obtenção de recursos, permitindo-se focar em um apenas ou utilizar-se de qualquer combinação dos vários meios possíveis.
O sistema de desenvolvimento é orgânico e culmina na poiese que é sua progressão, não é uma escada, é um labirinto de degraus e cabe a você inventar suas próprias pernas.
Nada se perde nesse jogo, o que há apenas se transforma.
Final Fantasy VIII, por seu sistema inovador e transfigurador de progressão, demanda apenas uma coisa para o desenvolvimento dos personagens: o desenvolvimento do jogador.