Visite o teleférico antes de salvar o mundo
Existe uma história contada há tanto tempo que os contextos se perderam, os papéis se foram, as ordens foram misturadas. É algo tão intrínseco ao consciente coletivo da civilização, essa narrativa de princesas e príncipes e cavaleiros e dragões, que ao se saber que nossa genealogia real, de anos e anos atrás, vem de uma base dessas, nem se para pra validar quem realmente fez o quê para quem, ou derrotou ou não aquela tal coisa. E, ao se perder o todo, as partes que ficam fazem pouco sentido e, mesmo reutilizando nomes e homenageando os mortos, nem conseguimos entender a importância do ato da batalha, da vitória e da conquista.
Mas, independente do que se entenda ou do que seja realmente real, existe um reino e existe uma herança, existe uma princesa e existe um guerreiro, existe um bem e existe não um mal, não um erro, mas a essência de tudo que é vil – a corrupção mais profundamente humana. Essa corrupção surge de tempos em tempos, reencarnada como monstro devorador de exércitos; como fera destruidora de cidades; como homem encoberto de luxúria e cobiça; como energia destilada, tentadora e radioativa. Então há a batalha. Então há a lenda. Então há o esquecimento.
E o que sobra, quando tudo é só conversa e ninguém realmente se importa, pelo menos não mais? Independente da vitória ou da derrota, quando o tempo passa, o que resta pra quem fica? São as coisas físicas e palpáveis, a água e a terra, a lida e a colheita. Quando se apresenta um mundo a ser salvo, ainda mais que esse mundo nem sabe ou nem lembra que precisa ser salvo, esse mundo precisa existir. E em Breath of the Wild, ele existe.
O reino de Hyrule é gigantesco, mas não é tão grande quanto parece. Cavalgar suas estradas e navegar seus rios de cidade em cidade, de estábulo em estábulo, é uma tarefa tão prazerosa que não sentimos o cansaço do trânsito. Onde você apontar no mapa, no pedaço de papel que diz que toda essa terra pertence ao rei, há algo para se encontrar. Não necessariamente algo grande, como uma revelação ou um mistério, mas algo bom, como uma árvore de frutas; um acampamento inimigo; uma toca de raposa; um vendedor que só aparece a noite, quando a lua está cheia e o céu sem nuvens. Há boatos e fofocas, há fauna e flora, há minhocas debaixo da terra.
Ou melhor:
Existe uma pequena ponte no mapa, que você consegue ver quando aperta o menu de mapas, que também é o pause. Ela é facilmente identificável por estar entre duas colinas ou entre dois longos corpos de água, pelo mapa mostrar com linhas e letras que ali existe um rio e aquela é a ponte Rebonae, ou a ponte Thims, ou a ponte Carok. Em qualquer momento da sua história, você pode ter passado por uma dessas pontes e a notado e aceito como ponte, porque sua existência se justifica arquiteturalmente como passagem: é mais prático, como transporte de grãos, gado, e como guia turístico, atravessar por aqui do que fazer toda volta na montanha, ou ir até a nascente do rio para contornar, ou pular de paraglider, ainda mais porque carroças não pulam de paraglider. E, se a ponte parece meio zoada, é porque não foi construída pelo reino para comodidade dos cidadãos, mas sim por bokoblins que curtem fazer umas engenhocas. Pode ser que exista algo relevante em torno dessas pontos, em um contexto jogo, mas não é o motivo de estarem ali. Elas estão porque, antes mesmo de você chegar a precisar delas, outra pessoa precisou delas, e isso é o suficiente.
O mapa mostra também uma grande área vazia mais ao sul, que não é tão vazia assim, mas pela densidade populacional humana negativa podemos usar o termo. É perto o suficiente da cidade principal, perto de um estábulo aqui e um ali, mas longe o suficiente de tudo pra não incomodar ninguém, então claro que é aqui o local onde acontecem os festivais de música de Hyrule. Aqui é onde o palco principal é montado e aqui é onde o palco secundário é montado, onde as bandas locais e as internacionais ruins que só foram chamadas para cumprir cota tocam. Aqui é onde montam a tenda DJ, que ninguém liga. Aqui é onde as pessoas montam suas barracas e fazem sexo sem proteção. Aqui é onde colocam os banheiros químicos. E existem festivais de música em Hyrule. Pode ser que por um momento eles tenham parado, pois houve guerra e destruição e morte, mas antes e, mais que tudo, depois, a música é a expressão buscada pela alma em gritar sem entender muito bem sobre as coisas certas e erradas. E existe música em Hyrule, ou ao menos nessa Hyrule. Música que não precisa ser ouvida para existir.
Apesar do centro social principal dessa Hyrule estar meio zoado e portanto não ser considerado cidade, todas as demais cidades possíveis e necessárias estão lá. Você pode até criar a sua própria, se quiser, contanto que seu nome termine com son. E todas as pessoas, de nome e sobrenome homenageando os mortos, que existem nessas cidades, sabem que algo está por aí. Podem não saber quando vai vir, nem se vai vir, mas algo aconteceu e existe uma tensão, um cheiro, de que algo vai acontecer – cedo ou tarde. Então quando o enredo chega, aos poucos, pra mais ou pra menos, não é surpresa pra ninguém que existe uma princesa a ser salva e monstros a serem derrotados. Os pormenores do passado são inesperados, mas não são eles que afetam aqueles que ficam. O que afeta quem mora em Kakariko e Hateno e Lurelin é o que aconteceu e a incerteza da volta do herói, se é que existe um herói, e que, como humanos, o que precisamos fazer é seguir fazendo o que sempre fazemos e o mundo vai seguir seu curso.
O fim do mundo só é o fim quando as pessoas passam a não ser. Sempre soa meio brega e meio filosofia de cozinha, mas o ser com vida, com diligência, é tão forte e tão bonito que explode o mundo em mudança, em direção, em propósito. Mesmo quando um horror tão pesado, tão profundo, recai sobre tudo que é conhecido e querido, o fato de não se parar, de se seguir cem anos e outros cem caso seja permitido, é o que faz o mundo respirar de verdade. Respirar além do cartucho, além do personagem programado e do modelo 3D.
E as pessoas seguem existindo e acreditando, mesmo que a lenda seja falha e mal contada, mesmo que tanto tempo tenha se passado que até a óbvia mancha assustadora de maldade na distância seja praticamente ignorável. E quando a vida existe e existe por si só, mesmo que Link nunca viesse a acordar e absorvê-la, como não salvá-la? Como não aceitá-la como real? Existe prazer em salvar um mundo que vive por si próprio – que vê que pode viver por si próprio. Então seguimos do ponto A ao C ao B, por esse mundo, e resgatamos toda dignidade, como heróis reais, por todos eles, desse mundo. E, feito o chefe depois do chefe depois do chefe, o que sobra é muito mais que um jogo riscado na lista. A luz do console desliga, mas Hyrule permanece viva.