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Confessionário

Entramos em Bloodborne com receio. Na maioria das vezes, já estamos calejados de tanto levar esqueleto de rodinha na cara, flechada gigante nas costas, marretada elétrica na cabeça. Vem ceninha, vem bichinhos engraçados, vem a incerteza de qual nossa história como personagem, quais nossas habilidades nesse ambiente que é tão oposto ao que acostumamos quando falamos dos últimos quase dez anos de From Software. Lobisomem e ok, somos soterrados pela escala, pelo poder, pela inabilidade de início de jogo. Esse encontro ensina a atacar, a desviar, a fugir, e a morrer, se chegarmos a tanto. Nos coloca em nosso lugar, nos permite encontrar nossas verdadeiras armas, e então some.

E daqui para frente estamos um para um com tudo que nos é colocado como inimigo, e, por mais que exista um gigante aqui e um outro lobisomem acolá, o que nos mata de verdade, na maioria das vezes, é humano, é um igual, em poder e estatura, em vontade. A história nos conta de uma pessoa que, por doença ou declínio, vai até Yharnam em busca do tratamento de sangue, e nada mais natural que todas as outras pessoas em Yharnam usem o mesmo tratamento, e portanto sofram as mesmas consequências.
Com o tempo, dominamos a arma de truques de nossa preferência, entendemos padrões de multidão e dicas de ataque de tudo que respira pelas ruas, e esticamos cada corrida cada vez mais longe da lanterna, até finalmente alcançar um ponto real de desafio. Esse desafio pode ser, claro, a Cleric Beast, mas derrotá-la ou não é indiferente ao seguimento regular do jogo, que de começo te apresenta um nível gigante de caminhos opcionais ou só uma linha reta gigante que vai do começo ao fim sem muitos rodeios. Então esse desafio, na verdade, acaba sempre sendo Father Gascoigne.

Estamos acostumados a sermos soterrados pela escala. De modo geral, os chefes no universo Souls são maiores que o maior jogador, denotando não força, mas sim superioridade. Mesmo o mais aparentemente frágil é duas vezes o seu tamanho, se move mais rápido do que seu porte permite, ataca com ferocidade e, se o destino permitir, joga todo tipo de comparsa em cima de você antes sequer que se possa começar a entender como a batalha funciona. Mas você entende e, eventualmente, ela funciona, e escangalhamos o monstro com nossa força pífia e itens roubados que dão dano de status.

Então quando Father Gascoigne entra em cena, acabamos por paralisar por um momento até entender que ele é o chefe. Gascoigne é pica demais e, se você fez uso de tudo que o jogo tinha para oferecer antes de chegar nele, já sabe da sua força, da sua pose, porque o chamou para limpar a horda de inimigos espalhada pelas ruas de Yharnam. Ele não é necessariamente um amigo, mas em um ambiente hostil e desconhecido nos apegamos aos nomes que aprendemos, às silhuetas reconhecíveis. E não existe aviso de que estamos entrando em uma área de chefe, porque a névoa limítrofe entre a arena e o ambiente normal só se constrói após a primeira derrota.

Tal qual a reencarnação da decadência de Yharnam, Gascoigne se transforma durante a luta, na sua frente, de um hunter altivo, tão ágil e habilidoso quanto você, com a mesma dominação de sua arma de truques favoritas e arriscando tiros que podem ou não gerar uma abertura na defesa do inimigo, em uma besta. Como todos, assim, pelo sangue, que eventualmente se tornarão também bestas. E a cada blood vial usado você se questiona quantos mais vai precisar até se tornar como ele; cada besta morta e jogada no chão você se pergunta se, talvez, não vai ser a próxima.

É a primeira vez que nos deparamos com um chefe obrigatório, que impede o progresso completo do jogo em relação a itens e história até ser derrotado. E, por começar de igual para igual, nos sentimos pertencentes aquele ambiente. Um hunter como ele, como todos os outros perdidos pelos espaços da cidade.

Quando a batalha se desconstrói e enfrentamos o monstro, mesmo sem saber todo o resto que vai se desenrolar dentro da história histérica que compõe Bloodborne, entendemos de súbito todo coração do seu conto: a corrupção pela busca da purificação, da eliminação do torto e, como consequência, se tornar o que se odeia, simplesmente por não  entender como o princípio da pureza em si funciona. Por mais que não exista uma forma documentalmente correta de se contar uma história através de um personagem, é pelas suas vírgulas que já sabemos, aqui do começo, como o fim vai ser. Começa no sangue, termina no sangue.

Maciel
Narrativas interativas e plantas mortas-vivas. Cansada demais para a internet, mas tentando sempre.

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