Monogatari Series: Disludo Fox, Part IV – F for Fake
(Este texto não tem spoilers de Monogatari, mas tem de F for Fake, que é um filme de 1973 dirigido por Orson Welles. É seu último e provavelmente mais mirabolante filme, contando a história de como Welles ia fazer um filme, aí coisas aconteceram e ele acabou fazendo outro filme que se tornou ainda outro filme e, por fim, virou F for Fake.
Esse filme tem a primeira insurreição de um filme sobre ele mesmo, em que sua construção acontece a partir unicamente de sua desconstrução. Por isso, é um filme muito relevante pra gente identificar algumas linguagens que ajudaram a gente a chegar no ambiente em que coisas como Monogatari são possíveis)
F for Fake é um filme húngaro.
Isso quem está dizendo não sou eu (e mesmo o filme não é húngaro), mas sim a lógica do próprio filme, quando o ator e personagem principal, Elmyr de Hory, fala sobre como ser húngaro não é uma nacionalidade e sim uma profissão relacionada à mentira e à falsificação. Orson Welles, que aparece em cena e, aliás, é tão personagem quanto Elmyr, concorda e diz que nunca conheceu um húngaro que não tentasse lhe convencer de sua proeza húngara em enganar pessoas. E é aí que o filme se propõe justamente a discutir em que medida ele próprio esteve mentindo para o espectador, e em que medida essa discussão já não é parte do truque, et cetera, et cetera.
O filme começa com uma cena na qual Welles é um mágico em uma estação de trem, pedindo para que lhe deem um objeto pequeno para seu próximo experimento. Um garoto lhe dá uma chave e Welles faz com que ela suma, substituindo-a por uma moeda e devolvendo a chave para o bolso do menino magicamente. Tudo isso é decupado e montado em vários planos, quer dizer, o truque não está dentro da situação representada, mas na forma como o artifício foi construído. No momento e no entanto, isso não nos interessa. É como se fosse a mesma coisa.
É aí que uma mulher que estava observando a situação se dirige a Welles, dizendo “up to your old tricks, I see”. Ela o conhece e é Oja Kodar, mas não sabemos disso ainda e isso também ainda não nos interessa. Ele responde “why not? I’m a charlatan” e, pouco depois, “as for the key, it was not symbolic of anything”.
Nesse momento, é mostrada uma equipe de filmagem, o que expõe o aparato do filme e nos faz perceber, então, a decupagem do truque de mágica, mostrando como a enganação já era uma enganação em primeiro lugar. Mas, por fim, ouvimos “this isn’t that kind of movie”, palavras essas que, agora sim, terminam de expor o mecanismo do filme para nós. Mas elas nos dizem algo mais: a chave não é simbólica. É só a chave. O truque é só um truque e não faz diferença se ele se dá através da técnica do mágico ou da técnica do montador. Não devemos encarar o construto como algo mais que um construto.
A exposição do processo de confecção de um filme só transformou um truque em outro, mas, assim como nossa primeira percepção, isso não faz a menor diferença. O artifício do filme, quando Welles o expõe se dirigindo a nós pela montagem e pela palavra, só se torna outro filme. Torna-se, então, um discurso cuja forma é também parte de seu conteúdo.
F for Fake se introduz, assim, como um convite à suspensão tanto da crença quanto da descrença. Não é importante a veracidade, mas a relevância. Como de fato é o tema do filme, a discussão do papel da autenticidade frente à utilidade de uma obra, de um discurso, de qualquer arte enfim, está presente no próprio modo como a discussão é feita.
Essa articulação é muito cara ao filme-ensaio, coisa que se popularizou e hoje tem de monte, e mesmo a crônica literária é derivada do ensaio literário. A especificidade que queremos dar, reivindicando F for Fake para a construção da linguagem da crônica audiovisual, é a da narrativa e de seu papel no discurso falado e também no mundo particular, fragmentado e metonímico construída por e para ela através da voz, coisa que nem todo filme-ensaio faz e que aproxima F for Fake da ficção como estamos acostumados na contemporaneidade. Esse foi um dos pioneiros da linguagem que incorpora a opacidade na transparência.
A narrativa, então, não é a de Elmyr de Hory e suas pinturas falsas; ou a de Clifford Irving e suas biografias; é a do próprio Orson Welles e seu processo para construir essas duas narrativas e outras mais. Depois de explicitar que, em outro momento, contará uma história sobre a mulher que acabou de descer na estação de trem, somos transportados juntamente com ele para dentro de um estúdio em um truque de montagem, mas um truque exposto porque vemos o fundo branco sendo trazido para realizar o ponto de corte, enquanto a fala permanece.
Importantes aqui são dois fatores: primeiro, essa fala termina com Welles prometendo que tudo que veremos na próxima hora é verdade; segundo, a fala continua durante o truque, o que nos mostra que é a voz que nos guiará mesmo quando dois espaços em que quem fala está presente forem não só obviamente como propositalmente não-contíguos. Ou seja, a fala reivindica a prerrogativa de costurar lugares e tempos e construir, com eles, uma realidade tangível. Ela não nos será sugerida, nem mesmo pela voz: ela é a voz.
Somos então finalmente apresentados a Elmyr através de falas esparsas que, junto com a voz over de Welles, fazem conversas entre falas que não se situaram no mesmo tempo nem no mesmo espaço — mas servem. Quando Welles fala, somos mostrados a letreiros que ilustram o que ele está dizendo.
Nessa apresentação, também vemos as imagens que estávamos acompanhando em um telefilme e depois voltamos, por assim dizer, para a “tela cheia”. Isso nos mostra que, sim, a conversa entre várias vozes foi fabricada exclusivamente para os propósitos daquela introdução. E mesmo Welles, em uma sala de montagem, comenta o que vemos — se coloca junto conosco, não tanto por se dirigir a nós quanto por falar das mesmas coisas que nós.
No mesmo esteio, boa parte dos créditos de F for Fake são apresentados na própria sala de montagem, com etiquetas de rolo de filme servindo de cartelas, e então vemos Oja Kodar andando na rua enquanto vários homens a olham. Isto é, há vários planos de homens olhando alguma coisa intercalados com planos dela e somos levados a deduzir que é para ela que estão olhando. Mas nada garante que não é um caso de geografia criativa.
É a voz, no entanto, que diz o real propósito dessas imagens: elas faziam parte de outro filme que os dois estavam realizando quando circunstâncias excepcionais os levaram para outro projeto, do qual vemos uma cena de Welles (novamente como mágico) e Kodar em um aeroporto — e então, Welles diz que vai deixar Kodar para mais tarde, para poder contar a história que realmente veio contar.
E a seguir adiciona que só está contando as coisas desse jeito bagunçado porque foi assim que elas aconteceram e reitera, agora por escrito, que tudo que o espectador verá na próxima hora é estritamente verdade.
Tudo isso que eu estou contando é para mostrar o esforço homérico que o filme faz em conjugar montagem e voz como se a montagem fosse ao mesmo tempo um subproduto natural da linha de pensamento do narrador e sua guia, como vemos depois também no momento em que Welles é interrompido em sua fala por um defeito da moviola — após o qual ele diz explicitamente que vai se utilizar exatamente da montagem para reconstruir a versão de Elmyr do que aconteceu com ele.
Ou seja, apesar de sermos mostrados à montagem e que seja explicitado seu papel na construção do filme como um artifício, uma mentira, esse discurso é construído absorvendo essa opacidade para dentro de sua transparência, regida pelo discurso da voz over, que se esforça para fazer sua narrativa desembocar no comentário e vice-versa do modo mais fluido possível. De modo que ele mesmo eleva Clifford Irving e Elmyr à condição de narradores quando ele se dirige ao espectador, falando que “we hanky-panky men have always been with you” e completando o discurso com falas de Irving e Elmyr, inclusive formando frases picotadas com palavras dos três.
Quase não se falou aqui até agora do tema do filme, que, se está tão entrelaçado com o modo como as histórias são contadas, deve ser comentado para compreendermos melhor como o filme se estrutura. mesmo porque as informações dadas até aqui sobre quem é o real protagonista do filme foram confusas.
Pois bem, os pontos centrais do filme parecem ser, de modo bem disperso, as histórias de Elmyr de Hory, o maior falsificador de arte de seu tempo, e Clifford Irving, seu biógrafo e ele mesmo perpetrador de uma das grandes farsas da época: uma falsa biografia autorizada de Howard Hughes — magnata da aviação e do cinema. F for Fake acompanha, então, o modo como as vidas dos dois se cruzam e fazem com que um tenha feito o outro famoso. Mas a partir do momento em que as versões dos dois sobre a biografia de Elmyr se chocam, surge um cenário diferente: um dos dois está mentindo, ou os dois. Welles se aproveita disso para criar um embate que, na verdade, não existe.
Quando, por exemplo, Elmyr diz que nunca assinou uma réplica, nos é mostrado o depoimento de Irving dizendo que sim, ele as havia assinado. O que se segue é uma sequência de desconforto e silêncio intercalados, mas que só existe filmicamente e Welles faz questão de mostrar isso, intercalando tomadas do telefilme e a imagem em si.
O que interessa a Welles não é a verdade. Não é um filme investigativo. Mesmo porque o filme se dedica a assinalar coincidências na vida dos três falsários — três, porque como vimos anteriormente ele se inclui com muito gosto na lista. Por exemplo, a ilha de Ibiza ser onde as duas maiores fraudes do século foram forjadas e o fato de que a proposta original de Cidadão Kane tinha seu protagonista baseado em Howard Hughes. Welles se coloca ao lado de Elmyr e Irving ao questionar a competência e mesmo a utilidade de especialistas em arte, para então questionar a própria arte.
Nesse ponto o filme parece se tornar autobiográfico e mesmo emocional para Welles. Ele conta sua própria história na Irlanda e revisita seu começo no rádio, onde eventualmente forjaria outra das grandes farsas do século — a adaptação de Guerra dos Mundos em 1938, em torno da qual se formou uma lenda. Mas essa memória não vem com orgulho: seu tom é melancólico e parte para outra reflexão, sobre a autoria.
Na verdade, a questão da autoria perpassa todo o filme, mas nesse segmento específico Welles diz exatamente “maybe a man’s name doesn’t matter… that much” enquanto vemos o pôr-do-sol sobre uma catedral (pouco antes, ele aponta que catedrais são a primeira grande arte da civilização e não têm assinaturas). Essa sequência, para alguém que construiu um nome ao longo de sua carreira e sempre, mesmo em F for Fake, investiu uma marca autoral muito forte em seus trabalhos, parece sugerir um sentimento negativo, de cansaço. Isso é reforçado pela sobriedade da montagem em registrar as catedrais — são as únicas imagens que ele não inclui em sua lógica de mostrar que está manipulando-as para incluir em outro discurso — e o silêncio, incomum no filme, que acompanha a voz.
Mas não é um sentimento de cansaço. É simplesmente a conclusão de Welles depois de toda a história e todas a conversa com Elmyr, Irving e o espectador, ainda obedecendo à ideia de que a narrativa desembocará em um pensamento e vice-versa. E, de fato, F for Fake não termina aí: na verdade, o que termina é apenas o período de uma hora dentro do qual Welles jurou falar a verdade. Mas, em tese, não sabemos disso — não somos avisados. Somos apenas reintroduzidos a Oja Kodar e à encenação de uma história dela com (ninguém menos que) Picasso.
Essa história tem três elementos que nos servem: primeiro, essa reencenação, por não ter Picasso, tenta o máximo que pode transmitir a ideia da participação de Picasso através de imagens referenciais; segundo, ela retoma dentro de sua narrativa elementos discursivos do resto do filme, como o “esporte de observar garotas”, o avô de Oja ser húngaro e haver sobre os húngaros toda a ideia (ou o preconceito) de que são farsantes, e quadros falsos; terceiro, a história é completamente mentira.
Primeiro ponto, então: quando a voz declara que o que se seguirá é uma encenação, não fica suspenso o acordo de que as imagens são reais, mas o de que as imagens são autênticas, sim. Quer dizer, as imagens passarão a ser acessório da história, mas não constituirão, ao contrário do que era o caso com Elmyr, a história em si reconfigurada na sala de montagem. Esse descompasso é importante porque é o que permite a Welles ensaiar uma montagem que passa a ideia do que está sendo dito, mas não necessariamente a figura do que está sendo dito.
Quer dizer, a sobreposição de uma foto de Picasso olhando por uma janela com a imagem em movimento de Oja andando na rua claramente não é autêntica, mas, para todos os efeitos dentro do universo que circunscreve aquela história — o da encenação — ela é real. Como é real a persiana que se abre diante de várias fotos de Picasso com olhar angustiado e os olhares angustiados que ele próprio pintou, que dão continuidade à ideia de que Picasso estava acompanhando todos os movimentos de Oja. Naquele instante e para aquela história, aqueles são os olhos de Picasso.
Também temos a parte em que Picasso fica furioso, de acordo com Welles, como uma tempestade em resposta à notícia de que seus retratos de Oja estariam sendo exibidos publicamente em Paris e temos, na tela e nas caixas de áudio, seguidas representações de tempestade, incluindo uma imagem de satélite e uma pintura do próprio Picasso (ou que parece ser dele, pelo menos).
Esse tipo de montagem não era exatamente novidade, embora fosse incomum na época — a Nouvelle Vague já havia a empregado. Embora tenhamos um embrião do que a gente vai chamar aqui de montagem mnemônica (guarde esse termo pra textos futuros), ela ainda não é a linguagem que existe em Monogatari. Isso porque nesse momento, como a voz conscientemente evocou uma encenação, perde-se a noção de que as imagens não são só produto como também constróem o fluxo de pensamento do autor, como era o caso anteriormente. Assim, não temos dúvida de que o que está na tela não está acontecendo, não faz parte da conversa. É, de fato, uma ilustração para a voz, ainda que ela se articule como antes.
Quer dizer, os dois elementos dessa articulação que discutimos aqui estão presentes, mas separados. Trazemos F for Fake para a discussão por como, literariamente, o filme traz os elementos que formarão a linguagem da crônica audiovisual. Mas ele, formalmente, ainda não a emprega como um método só — não do modo como estamos abordando. Sua principal semelhança com a crônica literária é essa subordinação mútua da narrativa e do discurso — o que nos leva ao segundo ponto.
Certas argumentações parecem despretensiosas durante o filme. Essa mesma sobre húngaros não parece levar a lugar algum, é só um assunto perdido durante a grande conversa entre o espectador, Welles, Elmyr, Irving e outros mais. Claro, o filme se aproveita do raciocínio sobre farsantes temerem mais que tudo serem descobertos não como farsantes, mas como pessoas não tão piores que os outros assim, e portanto tentarem parecer tão inescrupulosos quanto possível. De fato isso é o que F for Fake faz consigo mesmo: todo ataque à veracidade de qualquer coisa se torna um ataque, primeiramente, a ele mesmo, e é a partir disso que ele se constrói.
Mas não se esperaria que todo esse discurso faria sentido dentro de uma narrativa. Dentro da história de Oja e Picasso, o avô de Oja — que falsificou todos os quadros da exposição e deu a Picasso um novo estilo de Picasso — é húngaro e, portanto, todo seu pedido ao final, na sua conversa com Picasso, toma outra conotação, que agora os coloca não só como personagens, mas como representantes de todo o raciocínio exposto anteriormente. Da mesma forma, todo o raciocínio exposto anteriormente parece agora ter sido feito apenas para dar corpo a essas personagens. Eles se tornam, portanto, fractais.
Pena que a história seja mentira.
A promessa de que só a verdade seria contada durante uma hora expirou, mas o filme não. F for Fake faz questão de mostrar seu truque — poderia deixar o espectador na dúvida quando ele percebesse que o filme tem mais de uma hora e três minutos. Mas isso não faria a narrativa voltar ao berço da ideia, do discurso. E a ideia toda é — isso realmente importa? Ou seja, a história é mentira, mas não é por isso que ela deixou de ser uma excelente história.
A figura do mágico no começo não foi, portanto, escolhida à toa. Quando vemos um truque de mágica, sabemos — mesmo quando crianças — que aquilo é um truque. Mas nos impressionamos mesmo assim, primeiro porque o efeito visual do truque é impressionante e segundo porque desconhecemos como fomos enganados. Saber que se foi enganado sem, no entanto, saber como se foi enganado é a maior ilusão, porque estamos focados demais no truque, não na mágica. É por isso que F for Fake se expõe o tempo todo: a obra é partes iguais espelho e janela. O espectador, não sabendo qual é qual, toma transparência por opacidade e, assim, é levado pela correnteza achando que está vendo o outro na tela se afogar.
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