Da vez que inventei Team Fortress 2
Eu e meus amigos inventamos Team Fortress 2 lá pelos idos de 2005. Tínhamos quatorze anos e descobrimos Monty Python através de sabe-se lá quem – nosso primeiro filme foi Monty Python em Busca do Cálice Sagrado, que vou supor tenha sido também o primeiro Monty Python da maioria das pessoas -, e uma realidade até então desconhecida estragou para sempre qualquer senso de direção criativa que poderíamos estar desenvolvendo de forma coerente. A comédia, e consequentemente o que era divertido, não precisava de sentido. Melhor, não precisava de regras – e que moleque de quatorze anos não enlouqueceria em saber que não existem regras?
Existia uma estrutura, é claro, e o uso de temas razoavelmente conhecidos e nomes memoráveis ajudavam a manter essa estrutura quando tudo que circundava o pequeno meio de racionalidade estabelecido por referências era um completo caos. Ali entendemos que uma história podia ser lógica e/ou podia ser ridiculamente literal e/ou qualquer combinação de causa e consequência que as leis da físico-química narrativa poderiam conceber, e qualquer resultado disso somado a adereços engraçados e musicais de última hora poderia ser bom. E era bom. Monty Python em Busca do Cálice Sagrado é genial. E foi através dos conceitos dele, tanto literal quando metafisicamente, que escrevemos Team Fortress 2.
Nossa criação seguia uma cadeia lógica de causa e consequência, inicialmente chupinhada direto do filme e mais adiante extrapolada ad infinitum. Começava com a história de que bruxas pegam fogo porque são feitas de madeira, por isso bóiam na água, e que patos também bóiam na água, logo bruxas pesam o mesmo que patos. Então bruxos eram feitos de fósforo vermelho, e em algum lugar entrava o fósforo branco e quando bruxos e bruxas faziam sexo (2005 foi a época do sexo ser engraçado) soltavam bolas de fogo. Pimenta também faz as pessoas soltarem fogo, então pimenta era feita de fósforo. Lhamas comiam pimenta (2005 foi a época em que lhamas eram cool na internet discada do mundo dos flashvideos) e se tornavam inflamáveis e perigosas, então foi isso que Hitler (2005 foi a época de estudar alemão e achar Hitler um ser humano horrível, mas falar o nome dele o tempo todo ainda assim porque era edgy) usou na Segunda Guerra Mundial. Nasce o fusca. E a linha de associações cresce cada vez mais ridícula e juvenil até chegar época da ditadura no Brasil e ter qualquer coisa sobre a expansão da indústria automobilística no país e a implementação de fuscas turbinados com pequenas lhamas nazistas.
E então as folhas avulsas grampeadas que usávamos para escrever essa bobagem/obra prima se perderam. Na época eu tinha um fichário d’O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei, que já tinha visto dias melhores, e provavelmente foi entre tirar uma folha e outra do aramado horroroso que segurava tudo no lugar que os papéis contendo essa singularidade da literatura pós-moderna-adolescente caíram, foram levados pelo vento e segundos depois prenderam no all star de algum designer barbudo da Valve. Espero que ele tenha recebido uma promoção por roubar nossa história e, nos quarenta e cinco minutos do segundo tempo, transformar um FPS tonto militar na bolha de inteligência e sandice que hoje é Team Fortress 2.
Se você não jogou/conhece ainda, Team Fortress 2 é um FPS simpático e grátis, disponível na famosa loja de jogos virtuais, o Steam. O jogo é basicamente uma competição entre duas equipes (vermelha e azul) em diversas modalidades (capture a bandeira, arena, capture/defenda pontos de controle, king of the hill, corrida de carrinho, cada um com sua devida variedade, onde cada jogador pode escolher uma classe dentro de nove mercenários diferentes, cada um com uma especialidade diferente, e explodir a cara dos inimigos com armas variadas enquanto usa chapéus engraçados.
Aproveitando a ocasião, bem-vindo à Terra, experimente nossos quitutes e roube nosso nióbio de forma discreta.
Existem dois grandes atrativos que fazem com que Team Fortress 2, desde seu lançamento oficial em 2007 como jogo pago até hoje como F2P com microtransações, tenha servers lotados nos finais de semana com criançada gritando no chat de voz e Engineers lixíssimos de tocaia com torretas no spawn point do time inimigo até hoje: personagens identificáveis e aceitação massiva da comunidade na evolução do jogo.
Então aqui entra o jogo de correlações entre conceitos que certamente foi roubado do que, com quatorze anos de idade, roubei do Monty Python. Precisamos de um personagem rápido, que corra de um lado do outro do mapa e possa relatar para os colegas de equipe mais lentos o que eles vão enfrentar daqui segundos. Ora, a palavra batedor (do nosso amigo inglês Scout) tem dois excelentes significados: aquele que bate, com um bastão, no jogo de baseball; e aquele que corre na frente do exército para ver qual a situação do campo. Já que estamos na temática baseball então ele usa roupas e armas relacionadas ao tema, como um taco. Já que estamos no tema também, nada mais natural que ele seja mais jovem que o resto do grupo, goste de leite e refrigerante, tenha um ego enorme, e seja americano, de Boston.
Ou ainda, precisamos de um personagem para curar os demais personagens durante a batalha. Um médico é a escolha evidente, ok, mas ele precisa estar presente no campo de batalha, tanto ofensivo quanto defensivo. Bom, alemães tem um estereótipo bastante útil com medicina, sobre experimentação e agressividade. E então ele pode usar os próprios experimentos para curar e modificar quem quer que esteja dando suporte, como uma espécie de cientista louco alemão suavemente beirando a psicopatia.
É fácil pegar um estereótipo pelo tornozelo (o americano redneck burro, o francês frescurento, o escocês bêbado), jogar em um amontoado de gosma e chamar de personagem. Mas usar esse estereótipo de forma que ele dê a volta e não seja só uma caracterização fácil, e sim a alma do seu personagem, isso requer algo a mais. É sobre pegar ingleses e mostrá-los não só educados e inadequados, mas educados e inadequados em um nível extremo tão desconfortável que não podem ser algo além disso. Não existem regras, pegue os estereótipos, jogue num saco, sacuda e tire de lá a melhor e a pior parte de cada um.
Porque quando se tem essa base de fácil identificação, esse terreno comum entre todos os jogadores de todo mundo que é o mínimo supostamente conhecido da raiz do personagem que vai ser representado, qualquer extrapolação é entendida, mesmo as vagamente relacionáveis. Heavy é um russo gigante apaixonado por armas e pela Rússia, mas não é só isso. Seu tamanho é aplicável no seu papel dentro do jogo; suas reações e expressões deixam claro qual seu posicionamento no campo de batalha e o momento certo que deve entrar no combate para causar uma virada. Existem russos que não sejam gigantes e falem um inglês bom? É evidente que sim. Existe algo além de romance na França? É evidente que sim. Mas nos ligamos com aquilo que sabemos, e aceitamos muito melhor quando isso é distorcido e elaborado quando o que gostamos já não é mais o esteriótipo, mas o que se esconde atrás desse monte de corriqueirismos.
Não que exista profundidade nos personagens de TF2, ao menos não por parte dos desenvolvedores. São só esses caras engraçados que se matam de trinta em trinta segundos e depois voltam para mais. Mas são caras que você conhece, você gosta, você escolhe jogar não só por preferir tacar fogo nos inimigos a ficar de tocaia com uma sniper, mas sim porque Pyro tem movimentos memoráveis, comemorações marcantes e presença além do seu equipamento distribuidor de dor da vez.
A profundidade fica por conta da comunidade, esse segundo pilar de sustentação, talvez tão grande quanto os personagens, que é o que permite o jogo existir de forma ativa até hoje, mesmo a Valve já não sendo mais o que era. Os caras adotaram o jogo de forma tão massiva, tão completa, que pode-se dizer, hoje, que Team Fortress tem o nível de conteúdo extra que tem por conta da criação dos fãs e do reconhecimento da Valve por essas criações. O que antes era projeto amador virou mapa de jogo, história em quadrinhos do universo expandido, item da loja. O que era uma forma uma competição simples para promover uma ferramenta de jogo virou um evento extenso, com diversas categorias criativas. Foi esse movimento dos fãs, mais do que do time criativo de personagens do jogo, que retirou da lama exclusivamente por amor um jogo que poderia se perder nessas limitações rasas de depender dos estereótipos para existir empaticamente.
É um pouco como se Monty Python gostasse da nossa história das lhamas que gospem fogo e criassem uma sketch sobre. É quando se toca o público, quando se ergue o público pelas axilas, mostra o básico e fala “e aí? Gostou? Faz melhor então” que sua escrita criativa não é mais só isso e não é mais sua, mas sim de quem a consome. Team Fortress há tempos não é mais da Valve, mas sim de quem o joga. E não existem regras sobre o que pode ser feito em cima disso, não existem regras de para onde essa história vai, que temática essas armas devem seguir, que lugares devem ou não existir nesse universo. A regra é de quem cria, e quem cria ama e vê além das caixas marcadas no checklist narrativo.
Junte os amigos final de semana e jogue Team Fortress 2. Gostoso demais.